O deserto e as formas
Marco Lucchesi
Como definir a experiência do deserto, senão através de
aparente recorrência?
*
A tautologia surgiu no coração do deserto. Um anjo disse: A
= A. Mas quando veio o diabolus, descobrimos a cifra de um paraíso
perdido. A ≠ B.
*
O deserto, antes dele. O deserto, dentro dele. O
pós-deserto. Três mundos que divergem, irredutíveis. A soma de matéria
incandescente.
*
Deserto: um texto em branco cheio de impurezas. O mistério
da noite que um cego vislumbra. A estática o precede, mudo e ruidoso. O nada é
pura fonte de eloquência.
*
O que se perde se concentra no infinito.
*
Três desertos me habitam. Síria, Marrocos, Mauritânia. Três
vozes que me ferem, inapeláveis.
*
O raso e o profundo se convertem mutuamente no deserto de
areia. Até as dunas não passam da dinâmica interna do Mesmo. Altura provisória.
Ondulação.
*
Deserto. Desejo. O corpo do céu. Toda a extensão moveu-se
para os sonhos. O timbre dessas vozes me descentra.
*
Cruzar o deserto é como habitar o lado escuro da metáfora. A
potência da potência. Tudo e nada.
*
Medir o índice subjetivo dos trânsfugas que acorrem ao
deserto.
*
O deserto como ponto de encontro. O deserto como ponto de
fuga.
*
A solidão de um casto criminoso. Ou o pecado de virgínea
solidão?
*
Nenhum deserto é vazio. Nenhuma solidão, solitária. Nem
mesmo a morte foge à inscrição da história.
*
A impossível transição do deserto rumo ao Nada.
*
O deserto dos místicos. O deserto dos santos. O deserto de
ladrões e assassinos. Terra de não-lugar. Sonho de transumância.
*
O deserto é desejo. Não possui geografia a aspiração de
habitá-lo. O deserto não é o infinito em ato. Se muito, um infinito
potencial.
*
Pensar o deserto e desejá-lo. Fome de libertação. Um mundo
entre realidade e sonho: α-mundo. Assim, enquanto houver deserto, há esperança.
*
Andrógino o deserto: meridiana ambiguidade. O tempo, imóvel,
lembra a eternidade. A parte e o todo permanecem indiscerníveis.
*
O desvio para o vermelho chama-se aqui desvio do amarelo
alaranjado. Cada grão de areia, uma galáxia.
*
Como guardar a diferença na entropia?
*
Não há história capaz de abranger o deserto. Apenas o mundo
marinho, estático e semovente, de Débussy.
*
Ninguém se afoga no deserto de pedra, conquanto é certo o
naufrágio em deserto de areia. A redundância da paisagem. O vento como alma do
Mesmo.
*
Contra o deserto, o princípio de individuação. Se água ou
terra pouco importa. Porque o deserto um dia já foi mar.
Revista Humanitas, 30/08/2021
https://www.academia.org.br/academicos/marco-lucchesi
Marco Lucchesi - Sétimo ocupante da cadeira nº 15 da ABL, eleito em 3 de março de 2011, na sucessão de Pe. Fernando Bastos de Ávila, foi recebido em 20 de maio de 2011 pelo Acadêmico Tarcísio Padilha. Foi eleito Presidente da ABL para o exercício de 2018.
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário