Atualidade de Jorge Amado
Cyro de Mattos
Não é preciso esforço para compreender que Capitães da Areia
é um romance social que tem uma força surpreendente na prosa que denuncia,
comprometida com a vida miserável de certas minorias, que não entram na trama
do texto vigoroso com suas particularidades fixadas como se fossem tipos
curiosos, estranhos, diferentes. É romance que fere na dura lei da vida, sem
cura aos que são vítimas de um sistema que privilegia uns poucos e se fortalece
diariamente para esmagar a muitos.
É um romance que nas suas cores doloridas deflagra o
tratamento violento que a vida dá a essas minorias de meninos que vivem em
bando como imperativo da sobrevivência, maltrapilhos, rejeitados, vistos à luz
distante, mas que em Jorge Amado, escritor engajado nos problemas sociais que
afligem a vida, pulsam dentro, repercutem na compreensão afetiva que habita a
personalidade do autor. O quadro
informativo em certo trecho do amor homossexual entre o negrinho Barandão e
Almiro é visto como atenuante do que é
sublimado pela falta de carinho, na vida frequentemente espancada, aviltada,
provocada pela sociedade que não se cansa de pisar.
Publicado há sessenta
e três anos, com incontroversa atualidade, o romance presta-se ao juízo de que
a situação do menor de rua continua preocupante, hoje como ontem é um problema
difícil de ser resolvido sob vários entornos. Paulo Collen, em Mais que a
realidade (Cortez Editora, 1988, página 124), relata sua experiência de menino
de rua, que não teve família, procurava uma, e dos que tinham, mas que fugiam
de casa por problemas emocionais, causados pelos conflitos insuportáveis dos
pais.
Se o quadro não fosse esse, até mesmo com o emprego de uma metodologia pedagógica mais humana, como se insinua hoje, não se pode deixar de considerar que não se transforma uma criança, para que no futuro seja um homem, se não se lhe dá afeto, não a prepara com a ferramenta digna de exercer uma profissão, com meios que a façam confiante mais tarde, segura de si, para enfrentar a vida aqui fora.
O mundo é composto de ruins e bons, coisas uteis e
inúteis. O sol oferece sua luz para
todos, os pobres, os famintos, os favelados, os mendigos, os abandonados, os
loucos. Se o sistema oferecesse a esses desfavorecidos condições ideais para se
erguerem na dureza da vida, não fizesse uso da desigualdade, indiferença,
preconceito, perseguições, violências, a vida se movimentaria com a ocorrência
de respostas decentes. Nas relações sociais alcançaria a autoestima dos que
para render precisam da ferramenta necessária ao trabalho, na sua função, ação
e reflexão, cônscios da liberdade preservada como o mais alto dos valores e o
amor como o sentimento mais forte.
Em Capitães da areia, temos o exemplo de que nem tudo está
perdido quando o Professor, o
intelectual do bando, vai para o Rio de Janeiro estudar pintura. Outras
condições de vida são agora oferecidas, distantes daquelas que o negavam quando
andava como ladrão e fugindo da polícia
na cidade de mais de trezentas igrejas.
Travavam seus pendores, que soltos agora com ideias e emoções fizeram
dele um pintor famoso.
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Cyro de Mattos,
escritor e poeta. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual
de Santa Cruz. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do
Brasil, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna. Autor
premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.
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