Amor
Clarice Lispector
(Texto incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.)
Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de
tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a
andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia
satisfação.
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e
sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada
vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava
estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas
o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse
podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela
plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam
árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água
enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido
chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do
edifício. Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua
corrente de vida.
Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde
as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força,
inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo
engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos,
a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente
artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e
belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a
íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento,
a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita
pela mão do homem.
No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz
firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos,
viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o
tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos
que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha
como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que
também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas,
antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência,
continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para
sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se
confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim
compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.
Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da
tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada
membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu
coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para
que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade
que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou
levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles.
Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na.
Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria
aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e
sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente
parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida.
Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.
O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo
um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora
instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um
ar de mulher.
O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha
tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.
A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente
parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.
O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança?
Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava
chicles… Um homem cego mascava chicles.
Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos
viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o
cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na
escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação
fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir
— como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a
impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais
inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás,
o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o
condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde
estacou, os passageiros olharam assustados.
Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se
aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com
dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe
o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas
e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e
avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O
embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros
e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.
Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se
sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal
estava feito.
A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como
quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio
partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha
música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria
esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente.
Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de
sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível… O mundo se tornara de novo um
mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus
próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se
mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a
falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir.
Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da
frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser
revertidas com a mesma calma com que não o eram.
O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o
prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se
tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua
Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos
esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o
mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade
pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia
uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma
mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo…
E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.
Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta
não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das
outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher
pelo jornal o filme da noite – tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao
outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade
aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.
Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de
descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do
bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo.
Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.
Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração
batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a
vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso
rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se.
Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim
Botânico.
Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros.
Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no
banco de um atalho e ali ficou muito tempo.
A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua
respiração. Ela adormecia dentro de si.
De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a
penumbra dos ramos cobria o atalho.
Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores,
pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já
mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada?
Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande
demais.
Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida.
Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso
gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.
Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras
vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar,
pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do
qual ela começava a se aperceber.
Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no
chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros
apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa
rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma
aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte
não era o que pensávamos.
Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com
os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos
por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que
precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.
As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que
apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a
náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A
moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos
primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam
monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas
ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda,
perfumada… Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um
enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava
entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado… O
Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.
Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um
esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com
delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.
Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se
tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho,
avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim
em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados,
sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter
visto.
Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de
um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o
que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo
lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era
grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam,
a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia
que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino
que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu,
que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula.
Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado —
amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com
aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava,
avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de
um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria
acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe
baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha… Havia
lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles… Tenho medo,
disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu
choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu
coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal
sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde
olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe
ao rosto, esquentando-o.
Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na
rede. De que tinha vergonha?
Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se
rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como
não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só
piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.
Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas
plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter
passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico,
tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte
forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria
obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me
levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum
pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que
uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu
coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.
Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre.
E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como
um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos
molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja.
Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar
a empregada a preparar o jantar.
Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da
escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte
inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para
mudar a água – havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às
suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de
lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo
corpo tremia. As gotas d’água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão.
O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta,
insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando
os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os
mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o
amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do
forno ardia nos seus olhos.
Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres,
vieram os filhos dos irmãos.
Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um
avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o
jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete
com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco
pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira
brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família.
Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos.
Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam
admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante
entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.
Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam
deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava
adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos
anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das
crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o
mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia
entre os frutos do Jardim Botânico.
Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda
a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do
café derramado.
— O que foi?! gritou vibrando toda.
Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu
entendendo:
— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia
cansado, com olheiras.
Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior
atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.
— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.
— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro,
respondeu ele sorrindo.
Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde
alguma coisa tranquila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico,
triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas
que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para
trás, afastando-a do perigo de viver.
Acabara-se a vertigem de bondade.
E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora
diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se
deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.
( Clarice Lispector )
(Os cem melhores contos brasileiros do século – Página 212)
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