Era uma trempe
arranjada com três pedras meio-angulares. Acocorado ao lado dela, Aparecido ia
retirando com uma colher a borra do café aljofrando da chaleira de flandres
fumaçada. A mulher dele, num banquinho ao lado, tentava desmachucar o testo da
panela grande de cozinhar feijão. Na cozinha ela só não se responsabilizava
pelo café. Aparecido entendia que somente ele era competente para o fazer “supimpa”.
- É, Lainha, aprendi coar café assim
supimpa desde menino. – Ele falou, afastando-se da fumaça que subia da trempe. No
momento em que olhou para a mulher, refletiu a vida difícil que levava para
manter-se, a ela e aos três filhos. A família vivia mal alimentada e malvestida;
os meninos sem escola e todos sem casa para morar, pelas fazendas dos outros, a
cada dia mais necessitados. Aí lembrou de Lainha ainda robusta e bonita:
- Era uma
morena de abafar! Hoje, tadinha, taí com a pele enferrujada e cheia de rugas; o
cabelo alinhavado de fios brancos, olhar quebrando. E ainda não tem trinta anos!
Pensando assim, panhou uma brasa com um pegador feito de faxina, jogando-a
dentro da chaleira fumegando:
- Aí é que
está o segredo para se fazer um café bom. – resmungou, esfregando com os dedos
os olhos que ardiam cheios de fumaça. Pensou depois que "assim ou assado, fiz o
curso primário completo. Nem era para viver assim perambulando pelas roças dos
outros e ainda sem carteira assinada”. Concluiu seus pensamentos. Fora, a noite
chegava empretecendo os cacaueiros em redor entre uma chuva fina e fria e um
vento rumorejando pela folhagem. Por isso os dois meninos mais velhos
recolheram-se mais cedo, acomodando-se a um canto da sala estreita junto à
cozinha, como dois vultos entre a turvação, onde ficaram conversando coisas de
menino. A momentos Lainha impacientava-se:
- Cala a
boca, troços! – Gritava para os dois meninos barulhando. O mais novo dos três,
ainda nos cueiros, dormia na cama do casal, embrulhado com uma coberta de
tacos.
Era uma
noite de quinta-feira e a casa se encontrava quase pura, os mantimentos se
acabando. Havia um resto de feijão, um pouco de farinha e um pedaço de carne
seca; o querosene daria até o outro dia e um pouco de açúcar dava para o
momento e para o café da manhã seguinte. Só no sábado Aparecido teria dinheiro
para novas provisões.
- Carestia
medonha! Dinheiro não dá mais pra nada... – pensou, enquanto adoçava o café na
chaleira. Depois, despejou um pouco numa caneca e o saboreou, estalando os
beiços.
- Experimente,
Lainha. Veja como está gostoso! – disse, dirigindo-se para a mulher.
Às sete da
manhã do outro dia, Aparecido entrou para o depósito ao lado da casa, portando
uma mochila com carne afarofada; panhou a vara de podão, um facão e saiu pela
porteira da frente, rumo à Roça da Onça, onde faziam as primeiras colheitas do
temporão.
Aproximava-se
o São João, e Aparecido lembrou que precisava comprar algumas coisas para a
mulher e para os filhos. O que achava mais necessário era um par de sapatos para
Lainha. No momento ele não necessitava de sapatos, pois ainda possuía as
botinas compradas no ano passado. Para os meninos compraria roupas e uma caixa
de traques. No percurso até à roça pensou nessas coisas e na situação; fez
cálculos mas não viu meio que lhe garantisse as compras. Pensou arriscar um
adiantamento com o patrão, mas sem acreditar que isso desse certo. Só esqueceu
do assunto ao embaraçar-se com um jararacuçu-pico-de-jaca junto a uma bandeira
de cacau à margem do caminho:
- Sai,
peste! – Exclamou, pulando para um lado, batendo-se de supetão a um cacaueiro
apinhado de frutos amarelos.
(LINHAS INTERCALADAS – 2ª Edição, 2004)
Ariston Caldas
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