Para um menino, ser
chamado de mariquinha era um terror. Carimbava. Fosse hoje seria demolido pela
rede social, imaginem um efeminado, bicha, pederasta, guaxeba, boneca, jiló,
gobira, viado, 3x8. O 24 era o viado no jogo de bicho. Todos tinham pavor de
ser o 24 na lista de chamada da escola, virava motivo para bullying, era pior
do que ter tuberculose, lepra ou gonorreia. Era ser humilhado com o riso das
jovens, levava surra dos pais, ouvia o choro das mães. Fosse religioso, não
obtinha a absolvição na confissão, não podia comungar. Ser maricas era um
pecado.
Ser maricas ou mariquinha era
tormento, a vida tornava-se um inferno. Tive vários amigos assim rotulados.
Alguns deixaram a cidade, formaram-se, fizeram carreira. Outros foram
destruídos, “carimbados” que estavam. O mundo masculino era implacável. Entre
os machões estava um de apelido Chola. Nunca soube seu nome. O pai tinha
abandonado a mãe, ele fora expulso da escola. Sua avó comandava o jogo do bicho
no bairro. Feroz, mandão, humilhava o tempo inteiro. Ele tinha determinado
dezenas de garotos como maricas, dizia que não servem para nada, não enfrentam
uma briguinha de fim de aula, se pegam sarampo ou resfriadinho se apavoram com
medo de morrer. Certo dia, quando a situação chegou ao insuportável, uniram-se
os maricas e os supostamente mariquinhas, porque muitos dos não maricas assim
tinham sido rotulados em algum momento de suas curtas vidas. A quadrilha do
ódio era ativa. O grupo se armou com pedras, estilingues, cabos de vassoura com
pregos e folhas serrilhadas de abacaxi, que cortam dolorosamente. Cercaram
Chola no jardim. Intimidado, ele “pulou” para trás, deu o falado por não
falado. Chola era conhecido, dizia sim, depois dizia não. Falava pau e depois
dizia que era pedra, galo virava galinha. Dizia e desdizia. Atemorizado, ele
negou:
“Vocês maricas? Que
isso? São machos pra valer. Não! Nessa turma ninguém é maricas. Quem disse que
eu disse isso?”.
“Você disse, xingou. Escorraçou tanto
que a gente nem podia sair na rua.”
Atemorizado com a folha de abacaxi
ameaçadora diante do rosto, Chola saltou de banda, como se dizia, tirou da
seringa.
“Vocês sabem! Me conhecem! Sabem até
o que minha mãe diz? Que eu falar e um burro cagar é a mesma coisa. É assim
mesmo, sou mentiroso.”
“Mas hoje você apanha ou ...”
“Ou o quê?”
“Vai tomar um vidro de sal amargo.
“Ou uma concha de óleo de rícino”,
sugeriu Josué, de todos o mais tímido.
Para quem nunca ouviu falar, sal
amargo e óleo de rícino eram os piores purgantes. Gosto horroroso, resultados
tenebrosos. Era tomar, esperar um pouco, correr para o banheiro. Às vezes,
vergonha, nem dava tempo de tirar a calça.
“Um vidro? Não, um vidro, não. Uma
colherinha! Só uma. Uma, uma...”
“Uma para cada um que você xingou.”
E assim aconteceu. Nem calculam.
Foram três dias passados na casinha. Depois Chola foi transferido para a Santa
Casa onde o bondoso doutor Koury, santo homem, conseguiu estancar a cachoeira
malcheirosa e nos garantiu:
“Como médico gástrico, em meus 87
anos, tenho visto que todos aqueles que posam de valentes, corajosos, machões,
prepotentes, no fundo não passam de maricões camuflados, enrustidos,
envergonhados. Na hora H se borram. Borram e negam tudo”.
O Estado de S.
Paulo, 20/11/2020
https://www.academia.org.br/artigos/maricas-e-quem-me-xinga
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Ignácio de Loyola
Brandão - Décimo ocupante da Cadeira 11 da ABL, eleito em 14 de março de
2019 na sucessão do Acadêmico Helio Jaguaribe.
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