19 de novembro de 2020
Anunciação – Girolamo Lucenti (1602-1624). Museu Hermitage, São Petersburgo, Rússia.
Padre David Francisquini
Pergunta — A freira americana que fez um discurso contra o
aborto na convenção do Partido Republicano, elogiando as iniciativas pró-vida
do presidente Trump em defesa dos direitos do nascituro, disse uma frase que me
chocou: “Como cristãos, conhecemos Jesus pela primeira vez como um
embrião no ventre de uma mãe solteira, e o vimos nascer nove meses depois na
pobreza de uma gruta”. Por mais que a frase estivesse destinada às
moças que ficam grávidas, recomendando-lhes que não abortem, essa analogia me
pareceu inapropriada, pois parece esquecer a virgindade perpétua de Nossa
Senhora e o fato de que Ela estava casada com São José. O que o senhor pensa
disso?
Resposta — A Igreja tem
muitas formas de censura para as proposições contrárias ao seu ensinamento. São
chamadas de “notas teológicas”. As mais graves se relacionam com o conteúdo das
proposições censuradas: herética, errônea na fé, temerária. Outras se referem à
forma defeituosa pela qual elas são expressas: equivocada, suspeita, malsoante.
Por fim, uma formulação pode não ser errônea no conteúdo e na forma, mas ser
censurada pelos efeitos que produz num contexto determinado, qualificando-se
então como escandalosa, perigosa, sedutora dos simples ou ofensiva aos ouvidos
pios. Por exemplo, seria verdadeira uma ladainha que dissesse São Pedro
renegado, rogai por nós, porque de fato ele negou Nosso Senhor três vezes.
Mas a piedade dos fiéis ver-se-ia contundida pela evocação desse gravíssimo
pecado no contexto de uma ladainha em que se pede sua intercessão. Da mesma
maneira, é louvável o corajoso discurso contra o aborto, evocado na pergunta;
mas foi muito infeliz a formulação com que a freira se referiu à concepção
virginal, pois choca os ouvidos piedosos dos fiéis, especialmente dos devotos
de Nossa Senhora.
É preciso reconhecer que a frase da freira é até certo ponto
materialmente verdadeira, pois no momento da Anunciação e da Encarnação do
Verbo no seio virginal de Maria Ela ainda não estava casada legalmente com São
José, nem vivia com ele sob o mesmo teto. Essas duas realidades estão
declaradas explicitamente no primeiro capítulo do Evangelho de São Mateus. No
versículo 18, ele diz que Nossa Senhora tinha concebido por virtude do Espírito
Santo “antes de coabitarem”. E no versículo 20, que o anjo disse em
sonhos a São José: “Não temas receber Maria por esposa”, o que
significa que ele ainda não a havia recebido como tal.
O anjo disse em sonhos a São José:
“Não temas receber Maria por esposa”
Como explicar que no primeiro dos versículos citados se diga que Maria
estava “desposada com José”? Como podia recebê-La por esposa, se já
estava desposado com Ela? A aparente contradição resulta das traduções
portuguesas da Bíblia, pois nas traduções em outras línguas os substantivos e
verbos indicam claramente que Nossa Senhora estava apenas prometida,
e ainda era noiva de São José. Essa afirmação pode causar
surpresa em alguns leitores, mas será desfeita conhecendo-se melhor a
legislação e as tradições matrimoniais dos judeus.
No início da história do povo eleito — como fica patente no relato do
casamento de Isaac com Rebeca — eram os pais que negociavam o casamento de seus
filhos. Depois passaram os próprios filhos a escolher suas futuras esposas,
como ocorreu com Sansão. Querendo casar-se com uma filha dos filisteus, ele
pediu aos pais para negociarem a boda, pois o candidato deveria oferecer um
dote que fosse aceitável pela família da moça. Uma vez obtido o consentimento
desta, fazia-se um contrato, que era verbal antes do cativeiro na Babilônia e
passou a ser escrito depois, como o que foi redigido conjuntamente por Tobias e
o pai de Sara.
Celebrava-se então com certa solenidade a cerimônia do noivado, durante
a qual o noivo dava à noiva (se ela fosse menor, ao pai dela) um anel de ouro
ou algum outro objeto de certo valor. A duração do noivado era de um ano, para
dar tempo à noiva de se preparar para o casamento e aprontar seu enxoval.
Durante esse período os futuros esposos permaneciam em suas respectivas casas,
só se comunicando através do “amigo do esposo”, personagem ao qual São João
Batista se comparou quando explicou a seus discípulos que não era Cristo, mas
um enviado para anunciá-Lo.
Porém é necessário notar que, ao contrário de nossos dias, o noivado era
tão irrevogável quanto o casamento; de tal maneira que, se a noiva se deixasse
seduzir por outro homem, era punida de morte por lapidação, tal como acontecia
com uma mulher adúltera já casada. E caso seu noivo viesse a morrer antes do
casamento, ela deveria ser desposada por um cunhado, não podendo casar-se fora
dessa família com um estranho, respeitando o costume do levirato (Deut. 25, 5).
Devido ao caráter irrevogável do noivado, não existia na língua hebraica uma
palavra específica para designar esse período, sendo assimilado
linguisticamente ao casamento.
Os desponsórios da Virgem
– Sebastián López de Arteaga (1610-1652).
Museu Nacional de Arte, Cidade do México
À vista dessas considerações, compreende-se por que São Lucas, ao
escrever que o anjo Gabriel foi enviado a uma cidade da Galileia chamada
Nazaré, “a uma virgem desposada com um varão, chamado
José”, não quis dizer que Nossa Senhora estivesse casada, mas apenas
comprometida a casar-se com ele. Tanto os verbos desponso e despondeo da
Vulgata latina, quanto o verbo μνηστή do original grego e seus
derivados, significam prometer em matrimônio, pedir em casamento, pretendente,
noivo. Por isso São José e a Virgem Maria não viviam sob o mesmo teto, como
refere São Mateus, pois os costumes só autorizavam a coabitação depois das núpcias.
Foi após a visita de São Gabriel que “José fez como o anjo do Senhor
lhe havia mandado, e recebeu em sua casa sua esposa” (Mt 1, 24).
Essa explicação dos fatos, que corresponde inteiramente às tradições do
povo judeu, não é desmentida por São Lucas quando, ao relatar a subida do santo
casal a Belém para o recenseamento (portanto, depois das núpcias), se refere a
Nossa Senhora com as palavras ἐμνηστευμένῃ αὐτῶ (original grego), traduzidas por desponsata sibi uxore na
Vulgata latina, o que literalmente quer dizer, como vimos acima,
“sua noiva”. É possível que o evangelista tome aqui o verbo grego no sentido de
“casar-se”, que por vezes tem. Contudo, o mais provável é que tenha desejado
expressar-se com uma delicadeza suprema, para dar a entender que, no tocante ao
Filho divino que Maria portava em seu seio virginal, Ela era apenas a prometida
de São José. De qualquer maneira, São Jerônimo achou por bem acrescentar uxore —
ou seja, esposa — para deixar as coisas bem claras.
Em resumo, e para concluir a resposta ao consulente, podemos dizer que a
Santíssima Virgem Maria, na hora bendita da Anunciação, ainda não estava casada
com São José. Isso não significa que fosse realmente solteira, pois já estava
comprometida com ele mediante um contrato irrevogável, prescrito pela tradição
judaica. Portanto, ainda que a expressão “mãe solteira” tenha sido utilizada
com boa intenção pela religiosa mencionada na pergunta do consulente, ela é
inapropriada e até chocante quando associada à concepção virginal de Maria
Santíssima.
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Fonte: Revista Catolicismo, Nº 839, Novembro/2020.
https://www.abim.inf.br/e-errado-falar-de-nossa-senhora-enquanto-mae-solteira/
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