Resistência Santa de Firmino Rocha
Cyro de Mattos
O épico apresenta, o lírico lembra, o dramático articula
mundos interiores que resultam de atritos e conflitos na cadência crítica da
vida. O lirismo e o sentimento do amor andam juntos, como podem ser vistos na tradição da poesia
ibérica. Na sua maneira íntima, de permanente emotividade, o lírico procede
como quem recorda ou irrompe dos estados puros da paixão. O ouvido está atento
para captar situações, auscultar seres e coisas, pulsações e frêmitos que
correm no rio da vida. A mensagem é endereçada em muitos casos mais aos ouvidos do que aos olhos. Não pretende
deixar nada na escuridão e frieza. Seu estro murmura nos acordes da tristeza, adeus, agonia, lamento e
grito. Passado e presente são auscultados no presente para a sugestão r muitas vezes de
um sentimento único: o amor.
Em Firmino Rocha, poeta de expressão fácil, verso de tonalidades leves, um canto de amor emerge do eu lírico, ingênuo
no modo de sentir o mundo. Ao fugir do real circundante, recheado de horas
doloridas, que os olhos não chegam a
compreender, o transe imposto ao poeta o
impele para outra paisagem, de aflição
que atua como âncora. Provoca uma poesia
que, mesmo dolorida na captura da
vida, flui com ternura. Acontece com
forte apelo naqueles poemas em que o
fluxo lírico traduz a angústia de
ser ante o mundo: os pesares permanecem
em companhia dos recônditos por quem se vê ilha em seu estar no mundo.
De tendência intimista, no seu verso tão somente pulsa a emoção, que acontece
pelas arestas do coração, ofendido pelo
mundo áspero que fere. Os olhos tentam
colocá-lo distante, mas não conseguem. A
dor e a saudade, no seu banimento
impossível, irrompem num facho de luz
repentino para externar a solidão,
tornada queixa no gesto que é uma
profusão enorme entre o dramático, com seus delírios, e o lirismo, com a
sua pureza incrementada na verdade.
O som como elemento necessário forma o ritmo,
que emana suave e flui do verso com espontaneidade. Associada ao som,
sua poesia tem assim entonação
musical, embora nem sempre a intuição compareça no texto verbal com bons resultados. É ausente de síntese na
reflexão crítica, sem tendência
conceitual, emotiva por excelência submete-se aos instantes do eu profundo. É como o ar que o próprio poeta respira, nesses
encontros inevitáveis da solidão de quem, perturbado na alma, sofre e sente, resiste e chora.
A poesia tomada nessa
latitude não deixa de ser comoção, tornada
em linguagem condensada, intensa
e plural no seu significado. Há quem
afirme que nessa postura do sensível, com suas formas calcadas no eu lírico, a poesia obedeça ao
ritual simbólico da escrita para
revelar uma ideia. Argumente contra os
que acham que é a razão
que faz o outro se sentir bem, conhecer o inexplicável,
esclarecendo que a poesia através de emotiva pulsação interior traduz
murmúrios que estremecem,
encantam e comovem. Consegue demonstrar,
em sua linguagem aparentemente prosaica,
que um poeta nem sempre se apoia
em formas frias, não é um operador de
modelos reflexivos que buscam unir o ser humano, contraditório, finito, a momentos
da palavra tomada emprestada à
razão para pronunciar os indícios históricos da existência.
Poeta que marca a palavra com o abraço da paz e a lágrima do amor, Firmino Rocha é mais um caso de resistência da
poesia. Do homem que, ilhado na cidade do interior, de ambiência literária
incipiente à sua época, assume em sua feição heroica e santa o lado do sonho,
da loucura iluminada. Expressa por meio
de intuições e emoções a solidão solidária que encontrou como maneira de exercer a dialética do silêncio para não sucumbir ante
a opressiva lei da vida.
Para esse poeta de Itabuna, o poema é sangue e ar, calvário
e canto que redime, pilastra que
sustenta a dor de si e de muitos, ponte de inquietudes que se estende “prenhe das águas encobertas e das ramagens
emudecidas.” Dostoiewsky disse que a Arte salvaria os homens, o poeta Firmino
Rocha acredita que só o poema pode trazer-lhe o sonho da amada e salvá-lo, como
numa prece, das paragens cegas da noite sem beijos e canções.
Era sua crença:
Só um poema pode
esta angústia afugentar
esta tristeza exilar
esta escuridão espantar
Defensor dos valores eternos, como a liberdade e a paz, em
versos que se vestem com auroras e vertem estrelas, tem como um de seus temas
preferidos o da inocência que se escondeu
com a infância. A sua lira, que sobe “o manto azul da lua cheia” e se
desperta na janela pela voz de três baladas, canta a saudade, o amor, a infância, o mistério que cerca seres e coisas
nesse velho mundo impossível de ser elucidado nas propostas íntimas de uma canção constante. Firmino Rocha canta os
mares pressentidos de angústia e pranto, o eu lírico livre e sereno aparece no
verso espontâneo “colhendo do amanhecer
os seus milagres.” Canta a morte do
desesperado negro Stanley, que na terra de Tio Sam cometeu o pecado de amar uma
mulher branca.
Ânsia, lágrima, o beijo perdido para sempre, paixão,
lembrança, tudo isso está na poesia de Firmino Rocha, com seus vícios e virtudes.
Nela há sempre a necessidade de
amparar a solidão na companhia de sons e na magia de sonhos. Poesia
feita de recados, desejos impossíveis, indagações sem resposta, pranto e
distância. Filho do chão cacaueiro baiano, descendente de família pioneira na
conquista da terra, sua poesia não tem o
som épico e dramático que impõe o tema urdido
num contexto que ao longo do
tempo implantou uma civilização
singular, portadora de valores materiais, tipos e costumes com bases na lavra
dos frutos cor de ouro.
O poema “Deram um fuzil ao menino”, pungente canto de ternura feito como protesto contra a guerra (1939-1945), tem arrebatado o brilho
de toda a poesia do autor de O canto do
dia novo (1968). Há forte versão entre
os conterrâneos de que esse poema
encontra-se gravado, em bronze, na sede da ONU, em Nova Iorque.
Figura em antologia de poetas do mundo
todo, editada pela Organização das Nações Unidas. Mas não existem provas de que tais fatos sejam verdadeiros.
Pode ser uma lenda, criada pelos seus conterrâneos e admiradores, para
que o mito ganhe circulação internacional nos ares locais,
com meros propósitos ufanistas.
A poesia reunida de Firmino Rocha foi publicada numa
co-edição da Editus, editora da Universidade Estadual de Santa Cruz, e Fundação Itabunense de Cultura, na gestão
do professor Flávio Simões. Iniciativa louvável porque até aquele momento,
inclusive entre seus conterrâneos, o
poeta continuava inédito. Falava-se mais de Firmino Rocha como autor do poema “Deram um fuzil ao menino” e pouco se tinha conhecimento
do seu legado poético.
Certamente a
publicação de sua obra, reunindo diversos poemas esparsos por jornais e oferecidos a amigos em mesa de bar,
é uma forma de perpetuar esse poeta sul baiano,
resgatar e preservar a memória cultural do sul da Bahia
Poderia ser uma boa oportunidade
para inserir documentos e iconografia pertinente no livro Firmino Rocha – Poemas escolhidos e
inéditos (2008) e fazer a comprovação em
definitivo que o poema “ Deram Um Fuzil
ao Menino” encontra-se realmente
gravado na ONU, em bronze, além
de participar de antologia importante no
exterior.
Os comentários continuarão em torno do assunto informando
que os fatos que envolvem o poema famoso
com possível repercussão na ONU são
verdadeiros. Pelo sim, pelo não, com a
palavra os estudiosos de literatura, pesquisadores e historiadores da terra do poeta.
Um adendo.
Solicitei ao meu tradutor nos Estados Unidos, Fred Ellison, professor emérito
da Universidade de Austin, no Texas, para
verificar se o poema “Deram um fuzil ao menino” achava-se gravado em
bronze na ONU. E se pertencia a uma antologia da paz publicada pela ONU com
poetas do mundo. A busca exaustiva foi realizada por um parente de Fred
Ellison, funcionário da ONU. E nada foi encontrado que comprovasse estar
gravado na ONU o célebre poema do poeta itabunense. Nem antologia nem nada. Até
que prove o contrário, para mim é lenda este assunto que os aligeirados gostam
de propagar como verdade.
Leitura Sugerida
ROCHA, Firmino. Poemas escolhidos e inéditos, Via Litterarum Editora, Itabuna, Bahia, 2008.
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Cyro de Mattos é ficcionista, poeta, cronista, ensaísta e
autor de literatura infantojuvenil. Membro efetivo da Academia de Letras da
Bahia. Doutor Honoris Causa da UESC (Bahia).
Possui prêmios importantes. Publicado no exterior.
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