A Fala do Santo em Muniz Sodré
Cyro de Mattos
Muniz Sodré reúne em A Lei do Santo (2000) quinze contos, que têm como tema o mundo do negro afrodescendente e do brasileiro negro. Esse universo rico de saber e mistério é revelado numa prosa fácil de ser captada através das seguintes histórias: “Purificação”, “Água de rio”, “A lei do santo”, “Oluô”, “À moda da Bahia: Tengo Lemba”, “Al dente”, “Vermelho Havana”, “O cágado na cartola”, “Diferença”, “Metafísica do galo”, “Uma filha de Obá”, “Chuva”, “O despejo”, “Batatundê” e “A partida”.
O autor desses contos, que
escorrem no texto com uma linguagem clara, sutilezas no dizer fácil para
revelar o mistério que se ata imperceptível ao mundo real, é sociólogo e Obá
Aressá Nilé Axé Opô Afonjá. Formado em capoeira pela Escola de Capoeira
Regional de Mestre Bimba, sediada em Salvador. Dessa maneira, dotado do
atributo erudito e do saber popular
percebe-se de logo que o autor
movimenta-se à vontade para falar
do Oculto, do Destino, do Fundamento, do Preceito, do Rito, da Comida, do Som e da Cor, de tudo
que emerge da lei do santo na qual seus mitos e crendices resvalam-se pelo
mundo cotidiano do negro. Na escritura pontuada de saber e mistério ocorre um
ritmo cativante, que interliga o divino ao real, circunscreve autor e leitor
num círculo que ao mesmo tempo reflete o escritor, o ensaísta, o pensador e o
artista da palavra, íntimo do assunto, e o negro da Bahia ou de outro
lugar.
São contos bem escritos, de
imaginário simbólico que atrai, torna cúmplice o leitor de um mundo que
responde à sua cosmogonia com as marcas da magia, oriunda de verdades míticas,
sentimentos e belezas além do tempo. Saberes que em sintonia com o mistério vêm
das raízes, dizem de um modo particular de ser negro e seu mundo com bases na
fé, que é capaz de iluminar a parte noturna do ser com vistas à compreensão dos
seres e as coisas. É assim que, nesses
textos de ficção breve, vozes emanadas das fissuras e aberturas tênues fazem
com que se enxergue de maneira saudável uma cultura que tem sua história milenar,
transcendências povoadas de deuses trazidos da África.
O negro é mostrado aqui com o seu
universo feito de histórias, sintonia com sonhos, símbolos de costumes,
crenças, saberes e ritos. Evidenciado como protagonista de situações encobertas
de mistério, flagrado e deflagrado através de sua vida corriqueira, tantas
vezes importante no palco da existência, na trama que o envolve e quer
suplantar a ideologia, para assim alcançar com o seu entendimento herdado dos
antepassados as dimensões da utopia. O
plano dessa utopia é feito de saberes provindos de profundas camadas míticas,
de ressonâncias que chegam a provocar o efeito do estranhamento. Auxiliado pelo
orixá na demanda armada pelo difícil
gesto do viver, esse negro, consequência de virtudes e defeitos no contexto que
é indiferente ao seu destino,
mostra-se de corpo e alma como
consegue encarar a situação desigual, superar os ditames da dura lei da vida,
em geral imposta pelo não preto, e também como não pode se desvencilhar de crenças e costumes tão
dele.
O imaginário desse negro pulsa com
sombras herdadas de outros tempos, cada uma à espera de ser desvendada. Quando
uma delas aflora com luzes das camadas ocultas do mistério mostra-se ligada a
uma cosmogonia que se reflete no mundo e vibra em cada destino. Não é difícil
perceber que o inexplicável que cerca por todos os lados esse negro procede de
fímbrias e vislumbres, que se projetam além do tempo. Na escrita fluente, a narrativa segura de
Muniz Sodré costura personagens que infundem com o seu caráter um jeito de ser
negro, que parece não ser deste mundo, embora pise o chão do cotidiano em
rotação contínua. É que em Fala do Santo o tempo do cotidiano posto em
cada personagem movimenta-se sob o enlace do saber guardado como tesouro em
segredo. O lugar onde os personagens definem-se está sempre nos limites do
acontecimento impossível, que prende até o desfecho. Este, se não é do nosso
mundo, surpreende com o susto provocado na surpresa que ilumina, abrange a
beleza e a poesia, retiradas do divino para o encontro perfeito com o real
externo. A natureza de cada personagem com seus feitos impregnados de voos
impossíveis, percalços difíceis, possibilita a história dotada de sugestões,
auscultações, questões na medida que é necessária para dar a entender que o
mundo do negro é de profunda magia, belo, adensado de saberes, cantos e falares
respeitáveis. Suas surpresas que instigam na trama atraente decorrem de crença
inexplicável através da razão lógica, ao contrário se sustenta com os fios duma
magia que esconde um tesouro guardado no segredo.
Uma das marcas do autor na execução
da história consiste no humor, que às vezes aparece com a roupagem da ironia,
capaz de suscitar em pouco instante o riso que a vida oferece no trecho
envolvente da prosa espontânea. O conto
“Al vento” é exemplo da boa qualidade expressiva do narrador, que sabe prender
com o enleio da intriga. É vivido por
Mirinho, homem baixo e atarracado, que tem dentes fortes, fizeram sua fama
desde pequeno quando torava cana, descascava e chupava com “presteza de
máquina”. Quando topava com osso de boi, não se intimidava. Suas presas
rasgavam e estraçalhavam com prazer tudo que encontrassem de duro pela frente,
chegando rápido ao tutano. Carne-seca fosse como pedra era logo triturada,
virava uma coisa macia, degustada como
uma pasta saborosa.
Recebera de presente do padrinho
Anacleto um violão antigo, de grande valor.
Como o padrinho era tocador de cavaquinho, formou-se a dupla, bastante
admirada quando se apresentava no bar ou botequim. Anacleto, o padrinho, era um
homem corajoso e violento, todos o temiam. Vivia na lei do santo, dado a comer
carne de cachorro, daí ser considerado como filho de Ogum. Achava que o
afilhado tinha também a cabeça comandada pelo santo.
Mirinho foi morar em Niterói,
levando o violão como instrumento necessário para atenuar as saudades quando
batessem no peito com as cenas do interior. Fez-se conhecido nas serestas, rodas de choro e
onde quer que se exibisse um conjunto musical. Trecho desse conto admirável diz
que “desgraça às vezes se acumula para o pobre como dinheiro em mãos de gente
rica: o sujeito não precisa fazer nada, cresce o montão, como uma pedra que
role e, contrariando o provérbio, com limo’.
Mirinho já havia passado momento infeliz
pela perda da mãe, do pai, um irmão e até mesmo um filho, mas sentiu um forte
aperto no coração quando tomou conhecimento que o padrinho fora morto pelas
costas. Certa vez, nessa maré de tristeza, um assaltante investiu contra o
rapaz para tomar o violão. Resistiu. Na briga, desigual para ele, prestes a ser
vencido por golpes sucessivos do agressor feroz, ouviu uma voz a dizer-lhe:
“use os dentes”. Era aviso do padrinho em hora vexatória. Agarrou-se ao homem,
alto e forte, que lhe desfechara vários murros durante a luta. Enfiou a dentada
no peito, rasgando o mamilo e os músculos do ladrão. Tudo poderia ter terminado
com a fuga do ladrão ensanguentado, não aparecesse a voz do padrinho, dizendo
que queria receber seu agrado pela ajuda. Queria comer carne de cachorro gordo.
A iguaria era para ser preparada com as carnes de Tarzan, o cachorro de
estimação de Mirinho. A exigência não foi aceita, mas o espírito de seu França
continuou aparecendo nos sonhos do afilhado, fazendo caretas e exigindo que
fosse cumprido o que pedia como recompensa de sua ajuda na refrega acirrada que
Mirinho teve com o assaltante.
O espírito do padrinho ficou ofendido com
a recusa do afilhado. Não havia outra explicação para o que passou a acontecer
com os dentes de Mirinho e de Tarzan. Foram caindo um após outro, de maneira
incontornável. E ficaram expostos como troféus da desgraça na vaza de tijolos
que lhes serviam de prateleira. Difícil era saber, aos olhos de quem visse, o
que era de gente e de cachorro.
“Al
vento” é um primor de conto que aborda o negro ligado no seu plano mágico ao
palco da vida, podendo figurar em qualquer antologia do gênero, como também
outras histórias que integram A Fala do Santo. E esse é o melhor elogio que se pode fazer à
arte de contar a história do negro com o jeito de Muniz Sodré, autor que
usa linguagem simples por conta do
santo, sabe informar, nas passagens da escrita saborosa, e bem, as intervenções
do que está oculto. Como este acontece no enredo que prende e forma um diálogo
harmonioso com o leitor, em muitas situações chegando a hipnotizar.
Referência
SODRÉ, Muniz. A Fala do Santo, Editora do Livro Técnico, Rio de Janeiro, 2000.
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Cyro de Mattos é ficcionista, poeta, cronista, ensaísta e autor de literatura infantojuvenil. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da UESC (Bahia). Possui prêmios importantes. Publicado no exterior.
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