Ainda hoje, a história da gastroenterologia debate o caso que assombrou especialistas. Porque ele passou a fazer parte dos anais científicos. Jamais se viu coisa igual. Curioso, anômalo, singular. Tudo começou em calma madrugada, durante a pandemia de coronavírus. Um senador terrivelmente medíocre, mas unha e carne com o presidente da nação, sentiu cólicas intestinais tenebrosas. Foi ao banheiro, nada. As dores aumentaram. Chamaram o Sistema Popular de Medicina, do qual aliás o senador tinha desviado Himalaias de verbas, uma vez que tinha se formado nas melhores universidades do ramo, as cariocas, e o político foi levado ao hospital para uma lavagem ou enema ou clister.
Quando veio a reação, os médicos se entreolharam,
fascinados. Mais que isso, às gargalhadas. Ajustaram fortemente as máscaras por
causa do cheiro e chamaram colegas, laboratoristas, enfermeiros, auxiliares.
Nunca ninguém tinha visto aquilo, ficaram maravilhados. Em lugar da habitual
massa que costuma sair de condutos próprios, atravessando pequeno orifício
circular existente há milhões de anos nos seres humanos, o que estava sendo
expelido aos borbotões? O quê? “Não é possível”, disse o diretor. “Só não grito
milagre porque sou terrivelmente ateu.”
Dinheiro. Dinheiro vivo jorrava. Cédulas e cédulas do mais
alto valor que a nação hoje fabrica. As lindas notas de 200 reais com o
lobo-guará. Foi a primeira vez que aquele corpo científico viu uma nota de 200.
Estavam em circulação, porém ninguém as tinha recebido. Havia filas
quilométricas nos bancos e caixas eletrônicos tentando pegar alguma. Mas eram
mais inacessíveis que o pagamento emergencial para a covid. A coisa parecia
reviver a galinha dos ovos de ouro. Ou tinha-se a sensação que o rei Midas da
Frigia, levado pelo gênio da garrafa, Wassef, escondia-se na barriga do
senador.
Trouxeram baldes com detergentes e desinfetantes e todos –
com alguma repugnância, parece que o senador tinha comido lixo – começaram a
apanhar as notas, colocando-as de molho a fim de eliminar resquícios, chamados
vulgarmente de bosta. Mesmo nome daquele candidato político de Bauru, ou o
Merda, de Dobrada, ambos do interior paulista. Isso é que é lavagem de dinheiro,
comentavam, receosos que a Polícia Federal chegasse. Ninguém levantou a
possibilidade de ficar com aquele mundo de notas que fluía gastricamente.
Decidiram que, antes que o ministro da Economia soubesse e
criasse novo imposto, que não ia cheirar bem, correram e depositaram tudo em
nome de uma organização social. A imprensa repercutiu. O nome do senador –
político do clero subterrâneo – viralizou, ele foi celebrado pelos seus pares e
eleito presidente do Senado. Motivo: fenômeno da ciência, estudado por revistas
como a Lancet, o Journal of Organic Chemistry, Annual Reviews, Nature Science,
New England Journal of Medicine.
Prêmios Nobel de Medicina e Ciência foram chamados. Vieram,
avaliaram e disseram que era assunto para escritores como Gabriel García Márquez
e Luis Fernando Verissimo, Antonio Prata, Sergio Abranches, Antonio Torres,
Alberto Mussa e Loyola Brandão, ou historiadores como Lira Neto e Heloisa
Starling. Márquez já morreu, os outros não deram retorno. Todos senadores,
parlamentares, ministros, políticos, o Centrão inteiro, o trio O1, O2, O3
procuraram o senador a fim de que ele revelasse a fórmula do que comia e se
tornava dinheiro vivo. Modesto, ele confessou: “nada mais do que o frugal, o
mesmo que o Supremo come, lagosta, caviar, faisão, escargô, patê da campagne,
foie gras chaud, presunto Pata Negra, javalis da Pomerânia”.
A vida do senador passou a ser um agito. Fêrvo, como se diz
em Araraquara. Todos se postaram à porta do seu banheiro, para ver o que tinha
sido produzido. A família não aguentava mais a pressão, não havia sossego.
Pastores de mil religiões exigiam sua presença a fim de relatar o que
consideravam milagre de Deus. Passou a receber boletos exigindo pagamento do
dízimo. A Receita Federal revisou suas declarações, viu que ele jamais declarou
o que evacuava, foi processado, multado. Não suportando mais, o senador pediu
habeas corpus ao Supremo e sumiu. Como o traficante André do Rap. Igual ao
Queiroz, protegido por Wassef, o bom samaritano.
Este episódio entrou para os Anais da Medicina. Filólogos,
etimologistas e gramáticos admitem que a palavra Anais nunca foi tão
apropriada.
O Estado de S. Paulo, 23/10/2020
https://www.academia.org.br/artigos/o-dinheiro-que-veio-de-estranho-lugar
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Ignácio de Loyola Brandão - Décimo ocupante da Cadeira 11 da ABL, eleito em 14 de março de 2019 na sucessão do Acadêmico Helio Jaguaribe.
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