Cobria-se a Serra de flores. Correu primeiro um balbucio de primavera. Seria já a florada? Botões, aqueles pequenos sinais? No meio dos bosques escondidos entre os montes, o amarelo e o vermelho salpicavam, abriam no verde sorridente espanto. Em lugares mais resguardados, mais favorecidos, em breve surgia a neve florida cobrindo as pereiras e transformando, enriquecendo a paisagem. E logo também floriram os pessegueiros. Junto das favelas, nos parques dos sanatórios, rodeando os bangalôs, à beira das águas mansas, a florada em rosa e branco apontou finalmente, luminosa, irreal.
Perto do pequeno lago em que se debruçavam as pereiras
alvas, encantadas, o pintor armou o cavalete. Tocados de primavera, os galhos
roçavam a água que reproduzia a fila das árvores. Amarrada à margem, a pequena
canoa envernizada, vazia, estava juncada de flores que o vento carregara.
Elza surpreendeu Flávio pintando com aquele entusiasmo e
fervor. Tocou-lhe no ombro.
Espere um pouco.
- Você pediu licença para pintar aqui?
- Claro, disse Flávio sem olhá-la. Deixe-me acabar uma
coisa.
Elza passeou uns momentos pelas alamedas, depois voltou,
esteve a contemplar Flávio de costas. Vestia malha acinzentada descobrindo a
nuca vermelha. As mangas arregaçadas deixavam ver o braço queimado de sol, com
veias salientes. Elza aproximou-se, olhou-o de perfil. Sempre aquela maneira
nervosa de morder o lábio! Antes lhe dava ele tanta impressão de força, de
saúde. Mas agora apreendera o desmentido daquele empastamento, daquelas
rugazinhas quase invisíveis junto dos olhos, daquela curva dos ombros cansados
precocemente.
- Que é que você olhando?
- Você.
Levantou-se, desarmou a tela, guardou a tinta e pincéis,
vagarosamente, limpou os dedos. Enxugou o rosto suado.
- É mesmo maravilhosa a florada aqui. Você tinha razão.
Elza apanhou um pequeno galho, fez uma coroa, colocou-a em
cima da cabeça.
- Você já viu grinalda mais linda?
- Linda, disse ele, olhando-a muito sério. Tão linda que
receio que desapareça. Parece que a estou vendo, coroada de flores, subindo um
altar...
Apanhou um galho, outro, outro mais, fez um imenso ramo,
encheu-lhe os braços de flores.
- Não se mova. Assim.
Esteve a contemplá-la. Depois, subitamente, mudou de humor,
encostou-se a um pinheiro com um repentino enervamento.
- Que é que você tem, Flávio?
Atirou as flores ao chão. Chegou-se a ele, muito perto. O
rapaz desviou os olhos.
- Nada, disse por entre dentes. Nada a não ser um cansaço...
Cansaço de mim mesmo, que de vez em quando me vem. É preciso muito esforço para
construir uma lenda e viver dentro dela... Já estou cansado.
- Lenda por que, Flávio? Se a doença o impediu de seguir a
carreira escolhida, também não criou em você um artista, que com certeza não
teria existido, se não tivesse esta vida isolada?
- Artista...
A sua voz soou amargamente.
- Artista... Viver aqui sonhando que faço obras-primas.
Prodígio de auto-sugestão! E ainda mais...
Riu um pouco fino.
- Construir em você uma outra criatura, afeiçoar-me a ela
sem querer olhar, ver afinal a verdadeira...
Os lábios de Elza tremeram. Esperara sempre por aquilo, mas
apesar disso, fugiu-lhe a calma.
- Por que não quer a verdadeira? Será assim tão cheia de defeitos,
tão incompleta para ser querida?
Sentiu-se atingida dolorosamente no íntimo. Com voz aguda
prosseguiu:
- Tudo porque sarei. Desde que o Dr. Celso apregoou a minha
cura, que vocês me detestam. Sim, não negue. Para quê?
Lágrimas queimaram-lhe as faces.
- Você e Lucília... Com toda a certeza julgam que estou
cometendo uma traição. Quando falo em minha casa, no prazer de rever as minhas
criaturas queridas, ofendo a vocês...
Com a ponta do sapato Flávio esmagava pequeninas plantas,
num movimento obstinado.
- Elza...
Pegou-lhe o braço.
- Quer que me alegre, me envaideça...
Riu excitado, nervoso.
- ... por mandá-la de volta para o seu noivo?
- Você nunca falou nele.
- Ah... era um perigo longínquo.
Ainda é, disse Elza, penetrando os olhos de Flávio. Está longe.
Está na Inglaterra.
- Mas volta, volta breve para você. Como a imaginei há
pouco... Numa igreja toda iluminada, linda como uma imagem e pelo braço dele...
Olhou-a de perto com os olhos apertados, maldosos.
Beijos não deixam marca, felizmente para você.
- Flávio!
Elza empalideceu.
- Por que mudou assim? Por que esse ódio?
Teve uma imensa vontade de fugir. Sentiu a vista turva.
Voltou-lhe as costas. Encaminhou-se para o portão. Pisava um mundo fantástico e
desconhecido, com uma angústia de fugitiva. Quando atingiu a saída, Flávio
puxou-a pela mão. Elza resistiu. "Ouvira demais, não havia dúvida",
dizia com uma voz fria que a si mesma assombrava.
- Escute... Você há de se arrepender a vida toda, se não me
ouvir.
Ela resistia, procurava retirar a mão, vibrante, nervosa,
toda rosada. Ele largou-lhe a mão. Elza abriu resolutamente o portão, mas,
antes que passasse à estrada, sentiu-se presa pela cintura.
- Não adianta teimar, disse Flávio. Você tem que me ouvir.
Guiou-a até junto a uma pereira florida, Encostou-a nela.
Com as mãos coladas ao tronco da árvore, junto dos seus braços, prendeu-a:
- Sei a idéia que fazia de mim... Um fraco. Um fraco de
corpo e de espírito. E está muito admirada com a minha atitude. Então você não
compreende como essa separação é cruel, é desumana? Crê que eu não tenho
nervos? Vê-la de volta para retomar a mesma vida de há um ano...
- Deixe-me.
Os braços e Flávio caíram.
- Você não sabe lutar pelo que quer? Você me quer realmente?
disse Elza com profunda emoção.
- Quero-lhe, como nunca foi nem será querida por outra
pessoa.
A sua voz se tornava mais lenta, bizarramente pausada, e
como que envelhecida.
- Toda a minha vida, toda a minha esperança eu ponho em
você. Não tenho ninguém que me queira, e ao cabo de tanto tempo minha família
já se distanciou de mim. Tenho amizades que duram pouco. Iludi-me a mim mesmo
criando em você uma companheira de solidão. Nada lhe podia oferecer senão esse
mundo de amor e de ternura disperso nos outros homens, mas que eu conservo
intacto para você. Afundei-me tanto na nossa felicidade futura que a vivi
quase. Agora... vejo as coisas friamente. Você curada, pronta a retomar o fio
interrompido das suas relações, das suas amizades, e eu aqui... preso para
sempre.
Contraiu a fisionomia, cerrou os punhos, sacudiu os ombros,
encostou-se ao lado oposto da árvore, com a cabeça repousando nos braços
cruzados.
Elza tocou-lhe no ombro.
- Você há de ficar bom. Há de descer um dia curado. Seremos
felizes como toda a gente.
- Não sente o que diz... Não sente...
Olhou-a com os olhos vermelhos.
- Deixe-me descer com a lembrança do seu carinho, da sua
companhia. Espere um tempo... Talvez possa descer, esteja curado. Talvez eu
tenha que subir, adoeça de novo.
Um pequeno galho em que o vento bulira prendeu o cabelo de
Elza. Ela puxou a cabeça, desprendeu-se. Uma chuva de flores caiu sobre eles.
Flávio esteve a vê-la agitando os cabelos, sacudindo o vestido, atirando as
flores ao chão. Tomou-a bruscamente nos braços. Inclinou a cabeça, olhou de
perto, cada vez mais perto, aqueles lábios úmidos que se descerravam. Esteve
assim, sentindo-lhe a respiração e contemplando o rosto adorado. Uma abelha
zumbiu pertinho. Ele inclinou-se ainda mais, ia tocar naqueles lábios que
esperavam o beijo, mas largou Elza subitamente.
- Não devo beijá-la. Vamos embora.
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Dinah Silveira de Queiroz - Sétima ocupante da Cadeira
7 da ABL, eleita em 10 de julho de 1980, na sucessão de Pontes de Miranda e
recebida pelo Acadêmico Raymundo Magalhães Júnior em 7 de abril de 1981.
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