Joaquim
Maria Machado de Assis nasceu na Rua Nova Livramento, no Rio de Janeiro, filho
de Francisco José de Assis, “mulato pintor” e de Maria Leopoldina Machado de
Assis, “portuguesa ilhoa e, segundo a tradição, lavadeira”. Como se vê, os pais
eram pobres; mas dados a relações com gente de sociedade. Por isso, o
“inocente”, como se dizia nas certidões de batismo, teve padrinhos importantes
– Maria José de Mendonça Barroso, viúva do general Bento Pereira Barroso, que
fora ministro no primeiro reinado e na regência, e senador do império; e
Joaquim Alberto de Sousa Silveira, dignitário do Paço, comendador da Ordem de
Cristo, oficial da Ordem Imperial do Cruzeiro. O batizado foi na capela dedicada
a N. S. da Penha, construída em terras que haviam pertencido ao general e, por
isso, mais conhecida como “capela da chácara do Barroso”. Dos nomes dos
padrinhos formou-se o Joaquim, sendo que o “Maria” contentava também a mãe do
menino.
Foi garoto alegre e travesso, querendo bem a
madrinha e dela muito querido; teve mãe e irmã pequena, ambas deixando a vida e
Joaquim Maria muito cedo. O pai casou-se com Maria Inês, mulata que não teve
filhos e se afeiçoou maternalmente ao enteado; foi ela quem lhe ensinou a ler,
sem poder adivinhar o que viria a fazer o menino com as letras que ia
aprendendo a juntar. “Coisas futuras.”
Continuou
os estudos na escola pública, com disciplina reforçada pela palmatória. Depois,
morto o pai, lá se foi, com a madrasta, para um colégio dirigido por senhoras
não muito prósperas; tanto que, para reforço do orçamento, fabricavam balas e
doces; madrasta e enteado trabalhavam nessa indústria, ela na cozinha, ele de
vendedor ambulante. Nesse tempo moravam em São Cristóvão, para onde se haviam
mudado ainda em vida do pai, que era amigo do vigário do bairro. E Joaquim
Maria já revelava pendores intelectuais, não perdendo ocasião de ler e de
aprender: a padaria do bairro era de uma francesa, e francês o forneiro, lá ia
o menino tomar lições de língua então indispensável para dar lustro às pessoas.
Já
rapazinho, se aproximou de Paula Brito, proprietário do periódico Marmota
Fluminense, e que tinha uma tipografia e loja de artigos diversos, onde se reuniam
intelectuais. A tradição refere, sem prova, que ele foi aprendiz nessa oficina.
Certo mesmo é que, no nº 539 daquele “jornal de modas a variedades”, edição de
21 de janeiro de 1855, aos dezesseis anos, publicou o seu primeiro poema –
“Ela”. Fraco poema; mas não inferior aos que outros, já veteranos, publicavam.
E, principalmente, era a estreia, o nome em letras de forma, o marco inicial de
uma carreira que, até 1908, se estenderia por mais de meio século de trabalho
paciente, ascendendo, sem parada e sem retorno, rumo à perfeição.
Nesse
tempo, diariamente, toma a barca na Praia Formosa, desce no Cais dos Franceses,
atual Praça Quinze, e vai, a pé, até a Imprensa Nacional, que ficava na Rua da
Guarda Velha (atual Treze de Maio) , onde, aí sim, em 1856, era aprendiz de
tipógrafo. Aprendiz não dos melhores, no conceito do chefe das oficinas,
implicando com seu jeito de mergulhar na leitura sempre que lhe dava uma folga,
e até fora dela. Mas o Diretor deseja conhecê-lo, talvez mesmo em consequência
do motivo das queixas. Conhece-o, e logo se tornam amigos; coisa muito natural,
porque esse diretor se chamava Manuel Antônio de Almeida, o romancista de
Memórias de um Sargento de Milícias, livro hoje considerado peça indispensável
de nossa evolução literária.
Em 1858,
Machado de Assis é revisor e caixeiro na tipografia de Paula Brito; nessa época
se vão ampliando as suas colaborações em vários jornais, até que, a convite de
Quintino Bocaiúva, começa a escrever no Diário do Rio de Janeiro e na Semana
Ilustrada.
O primeiro
volume publicado é de versos; nem tão moço o autor (25 anos), como era costume
na época; título meio simbólico para quem sonhava com a glória – Crisálidas.
Tem
aumentado o número de amigos e camaradas de rodas intelectuais, do grupo de
Marmota, da Sociedade Petalógica (Peta – mentira; lógica – estudo), onde há
muita mediocridade. Mas há, também, o grupo, em que ele se integra, dos que
frequentam o consultório do médico Dr. Andrade Filgueiras, conhecem Ramos da
Paz, Macedo, José de Alencar, Francisco Otaviano, o escritor francês Charles
Ribeyrolles, cujo livro Brasil Pitoresco, Manuel Antônio de Almeida traduz. O
filho herdara a tendência paterna de relacionar-se com gente de nível social
mais elevado que o seu.
Na
Imprensa Nacional, torna-se auxiliar do Diretor do Diário Oficial. Em 1873 foi
nomeado primeiro-oficial da Secretaria de Estado do Ministério da Agricultura,
Comércio e Obras Públicas; em 1881, Oficial de Gabinete do ministro que é Pedro
Luís, autor de um poema célebre ”Terribilis Dea”, em que se inspiraria Castro
Alves para escrever o seu poema, antitético, “Deusa Incruenta”.
Em 1888
recebe a comenda da Ordem da Rosa, no grau de oficial; no ano seguinte é
nomeado diretor da Diretoria de Comércio; em 1892, já na República,
Diretor-Geral de Viação; posto em disponibilidade em 1898, logo depois reverte
à atividade, como diretor da Secretaria da Indústria do Ministério da Viação,
e, mais tarde, Diretor-Geral de Contabilidade.
Nessa altura
da vida, podia olhar para trás e rever-se no menino que brincava descalço no
morro do Livramento. Recebera títulos e honrarias, era, deste 1897, presidente
da Academia Brasileira de Letras; recebera em sessão solene, dessa mesma
Academia, um ramo de carvalho de Tasso, enviado da Itália por Joaquim Nabuco.
(1) A honra final não poderia prever: diante do seu ataúde, em nome dos
acadêmicos, falaria comovidamente o mais ilustre dos brasileiros vivos, Rui
Barbosa.
Esta
acumulação de datas, indicando a sua ascensão econômica e social, impôs-se neste
resumo, pois, num país em que a profissão de escritor ainda hoje é precária,
quisemos acentuar que a carreira burocrática lhe deu tranquilidade econômica
para escrever e aperfeiçoar-se, ficando o serviço público, neste, como em
outros casos, credor de nossa literatura.
Duas outras
datas, e que não podem ser esquecidas: 1869, ano do seu casamento com D.
Carolina Augusta Xavier de Novais, e 1904, ano em que ela morreu. A mulher,
imortalizada no seu melhor soneto, lhe trouxe uma tranquila felicidade; e, até
certo ponto, se pode dizer que ao seu desvelo se deve a plena realização do
escritor: sem Carolina, principalmente depois que nele se manifestou a
epilepsia, seria, talvez, interrompida a linha ascensional que diagramatiza a
carreira literária de Machado de Assis.
Conheceu-a
quando entrou a fazer parte do grupo chefiado por José Feliciano de Castilho,
escritor português, erudito, mas sem talento criador, o mesmo que negou, em
campanha sistemática, a obra de José de Alencar. Do grupo participavam Emilio
Zaluar, Ernesto Cibrão, Artur Napoleão, e, mais tarde, Faustino Xavier de
Novais, poeta satírico. Entre Castilho e Alencar, Machado de Assis não tomará
partido, se bem que, anos depois, venha a escolher o romancista de Iracema para
patrono de sua cadeira na Academia, e lhe preste publicamente o testemunho de
sua admiração.
Amigo de
Novais, veio a conhecer-lhe a irmã que ele mandara buscar a Portugal. Ela
chegou ao Brasil na casa dos trinta, livre e desimpedida de compromisso de
amor; na idade em que a maioria das mulheres já tinham filhas casadoiras, não
será muito rigor chamá-la de solteirona. Cinco anos mais velha que ele, “sem
ser bonita, deve ter sido extremamente simpática e atraente”, supõe Lúcia
Miguel Pereira, em sua biografia do escritor. Em Portugal, conhecera Camilo
Castelo Branco, Gonçalves Crespo, outros literatos; aqui, estando o irmão
doente dos nervos, organiza reuniões para distraí-lo. Entre os convidados, Machado
de Assis. E o namoro começou. E teve logo a oposição de parte da família,
Adelaide e Miguel, os últimos chegados de Portugal. Motivo: Carolina era alva,
branca, e o namorado, mulato sem disfarce. Duas senhoras brasileiras
amadrinharam a causa, o casamento se fez. A operação durara dois anos, de
começos de 1867 a 1869.
Valeu a
pena insistir: D. Carolina foi excelente esposa e companheira. Deu-lhe um lar
harmonioso; concentrou em si a bondade e o carinho da mãe, da madrasta, da
madrinha que ele perdera. Morta a esposa, dizem os biógrafos de Machado que ele
retratou a vida do casal em Memorial de Aires. Vida realmente feliz.
Bem
casado, glorioso, reconhecido, inclusive, pela nova geração do seu tempo, como
escritor máximo da literatura brasileira, realizou-se, lenta e
progressivamente, sem retornos, sem descaídas. É tempo, assim, de falar de sua
obra.
Na poesia
não esteva à sua própria altura. Diríamos, até, que se lançou no gênero, porque
era esse o de maior voga na época, o que reunia os grandes nomes literários.
Poucos os poemas em que atingiu a atmosfera da poesia. O restante é um versejar
nem sempre com bons ouvidos ou boas imagens.
É verdade
que Lúcia Miguel Pereira afirma que “ele foi inegavelmente poeta”; mas, na
mesma página, tratando das resistências de Machado a dar a edição das Poesias
Completas, reconhece que “talvez sentisse, com o seu agudo senso crítico, que
na poesia não se realizaria inteiramente”. Nesse tempo, 1901, já haviam sido
publicados: de Bilac, Poesias; de Alberto de Oliveira, Canções Românticas,
Meridionais, Sonetos e Poemas, Versos e Rimas, Poesias Completas; de Raimundo
Correia, Primeiros Sonhos, Sinfonias, Versos e Versões, Aleluias, Poesias; de
Vicente de Carvalho, Relicário. Note-se que, em Poesias Completas, muitos
poemas dos primeiros livros aparecem com correções de métrica e de vocabulário,
supressão ou alteração de versos, mostrando que Machado de Assis acompanhava a
evolução da técnica literária, posta em evidência pelo parnasianismo.
A prosa,
entretanto, é o terreno eu que edificou a sua glória. Nela se tornou mestre e
modelo, a seguir e imitar.
Para Lúcia
Miguel Pereira, os três primeiros livros – Contos Fluminenses, Histórias da
Meia Noite e Ressurreição, - ele os conseguiu fazer “quase inteiramente maus”.
Os contos foram escritos de encomenda, premência de colaboração para os
jornais; o romance foi armado obedecendo a um esquema, e não contém aquele
traço de catarse, de confissão, a presença, enfim, do escritor que precisa
libertar-se do tema que o empolga de entusiasmo ou de angústia. Mas não são
matéria a desprezar esses primeiros livros de prosa, pois, neles, aqui e ali,
já desponta o talento que irá dirigir o escritor sempre para o melhor, o mais
alto, como aquele moço do poema de Longfellow, em cuja flâmula se achava
inscrito o lema – ad Excelsior. (2)
Helena,
ainda romântico, de enredo folhetinesco, e Iaiá Garcia, história do nascimento,
vida e glória de um amor, já possuem muito daquele estilo remanchado, passinho
à frente, passinho atrás, que irá dar-nos a pintura minuciosa, quase
microscópica, de Brás Cubas. Quincas Borba, Capitu e Bentinho, para atingir a
cristalização sem jaça de Esaú e Jacó e Memorial de Aires.
Dos contos
poderemos citar “A Academia de Sião”, “A igreja do Diabo”, “A Cartomante”,
“Cantiga de Esponsais”, “A Desejada das Gentes”, “Noites de Almirante”, para
falar só dos que reúnem o beneplácito coletivo, embora saibamos muito
incompleta a lista.
Pouco a
pouco o estilo de Machado de Assis atingiu a condição de Instrumento afinadíssimo,
capaz de entretons, de sugerir mais que dizer, dominando o leitor, com quem
dialoga e discute os estados de alma dos personagens. E a quem transmite o
ceticismo, a dúvida, a ironia melancólica das afirmações interrogativas, das
perguntas que não pedem resposta.
São
unânimes os críticos em dividir a obra machadiana em duas fases, ficando as
Memórias Póstumas de Brás Cubas como marco divisório. A segunda não é,
certamente, a que mais agrada ao grande público, mas é nela que encontramos o escritor
na plenitude do poder criador, do talento e da técnica; nela é que se devem
deter os que desejam estudar a literatura em si, como transmissão de experiências e como integração de tema e expressão.
Antes de
passar à relação das obras do escritor, limitando-a à poesia e ficção, nada
melhor para encerrar esta biografia, que já vai longo, do que o fecho posto por
Lúcia Miguel Pereira na sua Biografia de Machado de Assis, hoje livro
fundamental para o estudo e conhecimento do romancista.
“À medida que se vai recuando para o
passado, sentimos melhor o que representa para o Brasil este mestiço que tanto
elevou a sua gente e o seu país, a pureza dessa personalidade que paira sobre a
literatura brasileira, como um símbolo da nobreza do pensamento e do poder do
espírito.”
OBRAS POÉTICAS E DE FICÇÃO:
1864 – Crisálidas (poesia)
1870 – Falenas
1870 – Contos Fluminenses
1872 – Ressurreição
1873 – Histórias da Meia-Noite
1874 – A Mão e a Luva
1875 – Americanas (poesia)
1876 – Helena
1878 – Iaiá Garcia
1881 – Memórias Póstumas de Brás Cubas
1882 – Papéis Avulsos
1884 – Histórias sem data
1891 – Quincas Borba
1896 – Várias Histórias
1899 – Páginas Recolhidas
1900 – Dom Casmurro
1901 – Poesias Completas
1904 – Esaú e Jacó
1906 – Relíquias de Casa Velha
1908 – Memorial de Aires
( 1) Torquato Tasso (1544-1595) – poeta italiano, autor da
epopeia GERUSALEMME LIBERATA.
(2) Longfellow, Henry Wadsworth (1807-1882) – poeta
norte-americano, muito conhecido pelo seu poema romântico EVANGELINA
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Fonte:
CLÁSSICOS BRASILEIROS (Machado de Assis) – Dom Casmurro
EDIÇÕES DE OURO
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