Quem é Rosa? “Rosa daquela esquina”. Ninguém sabia se era prenome, apelido ou nome verdadeiro. Todos sabiam, porém, que Rosa era um raio de gente, como dizia dona Merentina.
Descalça pela rua, beiços untados de batom, short subindo pelas virilhas, gola despencada, andança pelas casas dos outros; doze anos e nas horas vagas namorava pelos becos, pela beira do rio. “Se dona Merentina souber, vai me engolir viva”. Pensava, às vezes, se esticando com Arnaldinho, o filho, 16 anos, meio-lerdo só de aparência; o que era mesmo, um sonso de verdade. Em pouco tempo um leva-e-traz soprou nos ouvidos de dona Merentina. O primeiro impacto dela seria quebrar a cara de rosa, “molequinha que nem se olha”. Dizia, ameaçando levar o fato ao conhecimento do marido, comerciante de conceito no lugar.
Ciente do fuxico, Rosa nem ficou com medo e chegou a amiudar as andanças pela rua de Arnaldinho. “Te parto a cara, tipinha!”. Rosa ficou de olho duro, risinho frio, cínica, espevitada, “vá merda, sinhá bruxa!”, respondeu já em disparada, cheia de deboche. E quando o pai dela soubesse da encrenca! Iria chiar na palmatória, puxada pelos cabelos. Bonifácio não era sopa. Pedreiro aformigado, mãos calosas pelo cabo da colher, cinzentas pela cal, pelo cimento. Se Rosa tivesse mãe, a vida seria menos dura, mesmo perdendo parte das vadiagens. Sozinha, cozinhava para Bonifácio, cosicava, enchia o pote, engomava, limpara os sapatos dele nos dias de culto evangélico, a fora outras lidanças, varrendo, lavando, comprando coisas pelas bodegas. Antes dos agarros com Arnaldinho, fazia muito piseiro pela casa da mãe dele, sumia corredor adentro, ia para a cozinha onde ficava fuxicando com uma empregada, cuidando da vida de todo mundo. Mas era dona de um predicado importante: bonita para ninguém dizer o contrário, de cara, de corpo, de pele. Isso deveria render-lhe a tolerância das pessoas, até de dona Merentina antes da encrenca com o filho. Pena que as mazelas fossem tantas, a começar pelo desleixo consigo mesma, descalça, roupa despencando, cabelo embaraçado com uma flor perdida no meio. Uma doidinha, como diziam pessoas da vizinhança. Verdade que, se Rosa não portasse tanta maluquice, nem ia chegar para os admiradores.
Mas, como! Arnaldinho, agora, nos tampos dela, mesmo enfrentando as durezas da mãe que não dormia no ponto, pedante, crespa, quase violenta.
Dona Merentina suspirou de alívio quando soube que Rosa andava de chamego com Zacarias, escurinho auxiliar do pai dela que, ciente do acontecimento, deu uns bolos de palmatória nela e dispensou o moleque do trabalho. De pronto, Arnaldinho fazia a renovação, para raiva e desgosto de sua mãe. Zacarias ficou triste, Rosa não saía de seu juízo, bonita, esperta, “um raio de gente”, agora, com a barriga crescendo, um filho de outro no bucho. Ciente do acontecido, dona Merentina assustou-se, entrou em choque. Recuperada, passou a idealizar coisas absurdas, como forçá-la a tomar uma droga para abortar; pediria a um médico um abortivo seguro e ameaçaria Rosa: “se não tomar, mando te matar!”. Voltava a lembrar de Bonifácio, temia providências dele levando o caso para Seu Borges, delegado de polícia, sujeito sisudo e justiceiro. De qualquer modo, Arnaldinho era caso perdido, havia traído os preceitos da família, misturando-se com quem não presta. Nem teria condição de preparar-se para o vestibular.
Ciente do fato, o pai de Rosa ficou assustado, com medo, frustrado, sentindo-se inferior à família de Arnaldinho. Fez cálculos, acrescentou, deduziu e resolveu ir-se embora do lugar, carregando a filha. Dona Merentina viu a mudança, passou pelo outro lado da rua como quem não repara. Bonifácio, na carroceria de um caminhão com utensílios velhos e trouxas. Rosa, na cabine, cabelo voando, boca cheia de batom. “Um alívio”. Lembrou que pedira ajuda aos santos, com fé, agora era atendida. Compraria flores e velas, enfeitaria o altar da igrejinha, mandaria celebrar uma missa de ação de graças. Testemunhou o carro saindo até quando sumiu de vista, levando Rosa para as profundas. Não precisaria mais aporrinhar o marido, “homem frouxo, sem decisão”. Por que Arnaldinho não apareceu para o almoço?
Numa curva da estrada, ele deu com uma mão e subiu para a cabine, sentando-se ao lado de Rosa.
Dona
Merentina não soube, até hoje, se a fuga dele foi tramada pelos três ou se
Arnaldinho pegou a ponga, de cara dura. Certo é que ela ficou alucinada,
falando aos conhecidos íntimos que estava sentindo vontade de se matar.
(LINHAS INTERCALADAS – 2ª EDIÇÃO)
Ariston Caldas
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