Ao ler que Cristiano Zanin, o advogado do ex-presidente Lula, está cobrando do Supremo Tribunal Federal (STF) uma decisão “o mais breve possível” sobre o habeas-corpus que pede a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro nos julgamentos que condenaram Lula, sendo notório que a Segunda Turma está desfalcada do ministro Celso de Mello por questões de saúde, fiquei com a sensação de que o advogado está querendo aproveitar-se da circunstância para conseguir a anulação das condenações.
É sabido que dois ministros da Segunda Turma, Edson Fachin e
Carmem Lucia, já votaram a favor de Moro, restando agora apenas mais dois
votos, os de Gilmar Mendes e Lewandowski, que já deram indicações do que pensam
ao anular um julgamento de anos atrás no processo do Banestado, considerando
Moro parcial.
O frequente empate na Segunda Turma tem favorecido os réus,
como manda a jurisprudência, e Zanin está disposto a aproveitar essa brecha
para, enfim, conseguir anular as condenações de Lula, o que o tornaria
novamente ficha-limpa, permitindo que se candidate à presidência em
2022.
Lembrei-me, então, de uma palestra que o escritor Deonísio
da Silva fez num ciclo sobre Guimarães Rosa da Academia Brasileira de Letras
(ABL) em 2018, sob o título “O julgamento de Zé Bebelo e a Lava-Jato”, sobre o
romance “Grande Sertão, Veredas”. Deonísio Silva compara Lula a Zé Bebelo e
Moro a Joca Ramiro:
“Zé Bebelo está quase derrotado, comanda nove homens e
quando seu bando conta com apenas três, Riobaldo, para salvar a vida do
ex-chefe e ex-aluno, grita “Joca Ramiro quer este homem vivo”.
Sem saída, Zé Bebelo descarrega a arma no chão antes de ser
preso e, quando os inimigos tiram-lhe o punhal, ele diz: “Ou me matam logo,
aqui, ou então eu exijo julgamento correto legal”.
Diante de Joca Ramiro imponente, montado em cavalo branco,
Zé Bebelo a pé, rasgado e sujo, requer: “Dê respeito, sou seu igual”. Ouve de
Joca Ramiro: “se acalme, o senhor está preso”.
É quando toda a jagunçada vai para a Fazenda Sempre-Verde.
Zé Bebelo, de mãos amarradas, é conduzido em cima de um cavalo preto, na
rabeira da tropa. Relata Deonísio Silva:
“Réu em inusitado julgamento no pátio da Fazenda
Sempre-Verde, o jagunço letrado Zé Bebelo, salvo por Riobaldo, seu
ex-professor, conduz o próprio julgamento. No insólito tribunal, os juízes são
outros cangaceiros, liderados pelo grande chefe Joca Ramiro, todos sob o olhar
misterioso de um jagunço que é jagunça: Reinaldo/ Diadorim.
A Lava a Jato pode inspirar outra leitura deste curioso
episódio de Grande Sertão: Veredas, em que o sertão é assim definido: “Sertão é
onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha
armado!” E mais: “onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de
autoridade.”
“O Brasil também já foi assim. E agora chegamos à
encruzilhada onde tribunais superiores estão decidindo se continuará assim ou
se mudará. Fazendo as vezes de um Sérgio Moro do sertão, o jagunço Joca Ramiro,
conhecido por sua lealdade e senso de justiça por todos os cangaceiros, tem
diante de si um réu audacioso, solerte e a seu modo leal e sagaz.
“Zé Bebelo é um réu que dirige o julgamento, fixa limites de
suas penas e traça as condições para cumpri-la: receber montaria, escolta, água
e comida na viagem para Goiás, onde promete fixar-se, deixando de combater os
ex-companheiros de luta, como vinha fazendo até ali. Mas se consegue obrar
todos estes feitos é porque Joca Ramiro é um juiz ainda mais sagaz do que o réu.”
E sobrevém o desfecho: Zé Bebelo é libertado sob condições que o próprio réu
impõe.”
Julgar o habeas-corpus de Lula sem a Segunda Turma completa,
como pretende o advogado Cristiano Zanin, seria uma afronta. O mais provável é
que o ministro Gilmar Mendes espere a volta dos trabalhos presenciais, no
próximo ano, quando o STF já terá o novo componente da Corte. A
composição final das Turmas pode sofrer alterações, pois o novo ministro, que
deveria assumir o lugar de Celso de Mello, pode ser deslocado para a Primeira
Turma para não ter que enfrentar um julgamento tão difícil.
O atual presidente do STF, ministro Dias Toffoli, deve ir
para a Primeira Turma no lugar de Luis Fux, que assume a presidência em
setembro. Haverá uma disputa interna para saber quem será o quinto membro da
Segunda Turma.
O Globo, 30/08/2020
https://www.academia.org.br/artigos/o-julgamento
Merval Pereira - Oitavo ocupante da cadeira nº 31 da ABL,
eleito em 2 de junho de 2011, na sucessão de Moacyr Scliar, falecido em 27 de
fevereiro de 2011, foi recebido em 23 de setembro de 2011, pelo Acadêmico
Eduardo Portella.
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