Saía do Hospital da Ressurreição, em
Valladolid, um soldado que, por usar a espada como bordão e palidez do rosto,
denotava claramente – embora a temperatura não fosse cálida – que ele deveria
ter transpirado em vinte dias toda a disposição adquirida numa hora. Ao
transpor a porta da cidade, percebeu aproximar-se em sua direção um amigo, a
quem não via há mais de seis meses. Este, benzendo-se, como se tivesse visto
alguma assombração, aproximou-se e lhe disse:
- Que aconteceu, senhor Alferes
Campuzano? – Imaginava-o em Flandres. Que palidez, que fraqueza é essa?
- Estou saindo daquele hospital,
onde sofri catorze suadouros, por causa de uma mulher a quem escolhi para minha
esposa, quando jamais o deveria ter feito.
- Quer vossa mercê dizer que se casou? –
Perguntou Peralta. – E foi por amor? Tais casamentos trazem sempre o
arrependimento.
- Não sei se foi por amor –
respondeu o Alferes – embora possa garantir ter sido por amargor, pois do meu
casamento ou cansamento, carrego tais coisas no corpo e na alma que não
encontro remédios para aliviar-me. Mas perdoe-me Peralta, estou fatigado, outro
dia contarei o rol das minhas desgraças, que é longo e fastidioso...
- Não será assim – disse o Licenciado
– pois desejo que venha à minha pousada, para ali desabafarmos nossas mágoas.
Agradeceu-lhe Campuzano, aceitando
o convite. Foram ambos a São Llorente e mal chegados a sua casa, após uns copos
de bom vinho, pediu o Licenciado que Campuzano narrasse os acontecimentos que
tanto o haviam mortificado. Campuzano não se fez de rogado, pondo-se logo a
falar:
- Vossa mercê bem se recorda como
fui, nesta cidade, amigo do Capitão Pedro de Herrera, que agora está em
Flandres?
- Bem me recordo, -
respondeu Peralta.
- Pois um dia, quando mal
acabávamos a refeição na pousada de Solana, onde vivíamos, entraram duas
mulheres de porte, acompanhadas por dois criados. Uma delas pôs-se logo a falar
com o capitão. A outra sentou-se numa cadeira junto à minha, cobrindo-se com o
chale até o pescoço, não deixando ver o seu rosto mais do que a transparência
do chale o permitia. Roguei-lhe que se descobrisse, ao que ela respondeu:
- Não sejais importuno. Tenho minha
casa; fazei com que um pajem me siga. Folgarei então que me vejais.
Beijei-lhe as mãos pela grande
mercê que me fazia, em paga da qual prometi punhados de ouro. E assim, no dia
seguinte, guiado pelo meu criado, fui visitá-la. Encontrei uma bela residência
e uma mulher de quase trinta anos a quem reconheci pelas mãos. Mantivemos
longos e amorosos colóquios durante quatro floridos dias. Continuei a visitá-la
sem que chegasse, porém, a colher o fruto ambicionado.
Nos momentos em que a visitava,
sempre encontrei a casa livre; jamais percebi traços de parentes. Servia-lhe
certa moça mais astuta do que simplória. Tratando meus amores como soldado em
véspera de partida, apertei, fielmente, a senhora dona Estefânia de Caicedo – é
este o nome de quem assim me deixou – que respondeu. – “Tola seria, senhor
Alferes Campuzano, se quisesse vender-me a vossa mercê por santa. Pecadora
tenho sido e ainda sou, embora não tanto que os vizinhos comentem e os
empregados murmurem. Não sou também de grandes posses, mas o que tenho aqui em
casa vale – bem contados – dois mil e quinhentos escudos. Com esta fortuna
procuro marido a quem entregar-me e a quem obedecer. Tanto sei dirigir uma casa
como orientar uma cozinha ou receber visitas. Nada desperdiço e muito
economizo. Procuro, pois, marido que me ampare e honre e não amante que se
aproveite e depois vá falar por aí... Se vossa mercê souber aproveitar a prenda
que se oferece, aqui estou a vossa disposição...”
Eu, que estava com o juízo, não na
cabeça, mas nos calcanhares, respondi-lhe que me julgava muito afortunado por
haver-me dado o céu, quase por milagre, companheira tal... E nos próximos três
dias de festas que vieram pela Páscoa fizeram-me as proclamas e no quarto dia
nos casamos, encontrando-se presentes dois amigos meus e um rapaz que dizia ser
primo dela...
O criado conduziu meu baú da
pousada para a casa de minha mulher. Encerrei nele, diante dela, a minha
esplêndida corrente, minhas roupas e entreguei-lhe para as despesas da casa os
quatrocentos reais que possuía. Seis dias desfrutei, calmamente, como genro
pobre em casa de sogro rico, a lua-de-mel. Almoçava na cama, levantando-me às
onze horas, comendo às doze e sestando às duas. Minhas camisas, colarinhos e
lenços, pelos perfumes que exalavam, pareciam um novo Aranjuez, banhados como
eram em água de flor de laranjeira.
Ao fim desses dias maravilhosos,
certa manhã – quando ainda no leito com Dona Estefânia – chamaram com grandes
batidas na porta. Ouço a criada dizer, assomando à janela:
- Oh, seja bem-vinda! Vejam só, veio
antes do que avisara na sua carta...
- Quem é que chegou, mulher? –
perguntei.
- Quem? Respondeu ela. Minha
senhora Dona Clementa Bueso, acompanhada por Dom Lope Melendez de Alemendárez,
dois criados Hortioga, a ama.
- Corra, mulher, e abra-lhes a porta, que
já vou – disse Dona Estefânia, à criada, que parara sem saber que atitude
tomar. – E dirigindo-se a mim. E vós, senhor, sabei somente que tudo o que aqui
se passará é fingido e visa a certo desígnio, o qual sabe-lo-eis depois.
Em seguida entraram no quarto Dona
Clementa e Dom Lope, bizarramente vestidos e ricamente ataviados.
Dona Hortioga, a ama, foi a
primeira a falar, exclamando:
- Jesus! Que é isto? Ocupando o
leito da senhora Clementa, além disso, com um homem?
A tudo isto, Dona Estefânia
respondeu:
- Não se aborreça, Dona Clementa
Bueso, e creia que não é mistério que a senhora vê estas coisas em sua casa.
Quando souber da verdade, sei que ficarei desculpada e vossa mercê sem nenhum
motivo de queixa.
Nestas alturas eu já vestira as
calças e a camisa e Dona Estefânia tomando-me pelo braço levou-me a outro
quarto e ali me disse que aquela sua amiga desejava enganar Dom Lope, com quem
pretendia casar-se. Que o engano era dar-lhe a entender que aquela casa lhe
pertencia. Uma vez realizado o casamento pouco se lhe dava que descobrissem o
engano, confiada como estava no grande amor de Dom Lope.
- E logo me devolverá tudo –
acrescentou.
Logo a seguir mudamos para a casa
de uma sua amiga, onde ficamos alojados num quartinho pequeno e imundo. Ali
estivemos seis dias e não passou uma hora que não tivéssemos qualquer
discussão. A dona da casa de tanto ouvir as desavenças, um dia a sós,
perguntou-me o motivo daquelas querelas que lhe pareciam tão inúteis como fastidiosas.
Contei-lhe toda a história... Ela então começou a benzer-se e me disse:
- Senhor Alferes: não sei se vou
contra a minha consciência ao contar-lhe o que também a pesaria se permanecesse
calada. Porém por Deus e pelo Destino, seja o que for: viva a verdade e morra a
mentira! A verdade é que Dona Clemente Bueso é a verdadeira dona da casa e dos
haveres que lhe deram como dote. Mentira foi tudo quanto lhe contou Dona
Estefânia. Está claro que não se deve culpar a pobre mulher, pois soube
arranjar para marido uma pessoa como o senhor Alferes.
Aqui ela deu fim a sua conversa e
eu dei princípio ao meu desespero. Fui ver o meu baú, encontrando-o aberto,
como um túmulo à espera do cadáver. Com boas razões seria o meu, se tivesse
calma para sentir e ponderar tamanha desgraça... Dona Estefânia se fora e com o
primo...
- Bem esperta foi – disse, neste
momento, o licenciado Peralta – haver dona Estefânia levado suas correntes e
tantos cintos...
- Nenhuma pena me deu essa falta –
respondeu o Alferes – pois também poderei dizer: pensou Dom Simueque que me
enganava com sua filha caolha e, por Deus, coxo eu de um lado...
- Não sei a que propósito pode
vossa mercê dizer isso – respondeu Peralta.
- O propósito é, disse o Alferes –
de que aquele embrulho e aparato de correntes, cintos e roupas poderia valer
quando muito dez ou doze escudos.
- Isso não é possível – replicou o
Licenciado – porque a corrente que o senhor portava no pescoço aparentava valer
muito e pesar mais de duzentos ducados.
- Assim seria se a verdade fosse o
que a aparência mostrava; porém como nem tudo que reluz é ouro, as correntes,
os cintos e as joias não passavam de imitações. Estavam tão bem feitas que
somente o toque ou o fogo poderiam descobrir sua qualidade.
- Dessa maneira – disse o
Licenciado – entre vossa mercê e a senhora Dona Estefânia houve empara no jogo?
- E tão empate – respondeu o
Alferes – que poderíamos voltar a baralhar as cartas. Mas o estrago está,
senhor Licenciado, que ela poderá se desfazer de minhas roupas e correntes e eu
não do laço em que caí. Sim, porque, embora muito me pese, ela é minha mulher.
- Dai graças a Deus, senhor
Campuzano, que ela se foi e que não estais obrigado a ir buscá-la.
- Assim é – respondeu o Alferes –
porém, com tudo isso, embora não a procure, tenho-a sempre no pensamento, e
onde quer que esteja está sempre presente a vergonha.
- Não sei o que responder, senão
trazendo-lhe à memória dois versos de Petrarca, que dizem:
“Chi chi prende diletto di far
frode,
Non side lamenta s’altri l’inganna.”
O que traduzido para nossa língua
quer dizer: - “Aquele que tem o costume e o gosto de enganar a outros, não deve
queixar-se, quando é enganado.”
- Não me queixo – falou o Alferes –
e sim me lastimo, pois o culpado, deixa de sentir a pena do castigo. Dizem que
sararei, se me tratar. Espada ainda possuo; o resto Deus remediará.
(CONTOS DE ALCOVA – Dezembro de
1963)
Compilados por Yves Idílio
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Cervantes
A alma mística de Espanha ausente não
poderia ficar longe dessas páginas, e por falar por ela ninguém, maior que D.
Miguel de Cervantes Saavedra. O autor do “El Ingenioso Hidalgo Dom Quixote de
La Mancha” mais do que qualquer ouro de língua latina, entre nós, dispensa
comentários e veleidade seria querer apresentá-lo. Aprendemos, aqui em nossa
terra, a tomar conhecimento com a sua obra quase que ao mesmo tempo em que
sugamos o leite materno... Neste magnífico “Um Singular
Casamento” encontramos a mesma sátira, o mesmo humor, a mesma análise dos
costumes e a mesma observação detalhada dos outros escritos de Cervantes. É uma
pitada, - como diria Dom Quixote – tão ardida como penetrante...
......
Miguel
de Cervantes Saavedra foi um romancista, dramaturgo e poeta castelhano. A sua obra-prima,
Dom Quixote, muitas vezes considerada o primeiro romance moderno, é um clássico
da literatura ocidental e é regularmente considerada um dos melhores romances
já escritos.
(Wikipédia)
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