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segunda-feira, 6 de julho de 2020

O POÇO DOS MARIDOS – Humberto de Campos


          Ferdinanda Sobreiro havia sido, até os vinte e três anos, uma das moças mais requestadas e formosa dos salões do Rio de Janeiro. Muito clara, cabelos castanhos, olhos suavemente azuis, porte mediano, nenhuma a sobrepujava nas maneiras, na elegância, na distinção e, principalmente, na graça de um sinalzinho petulante, que lhe dava ao rosto, na face esquerda, o retoque de uma brejeirice encantadora. Aquele sinalzinho era, podia-se dizer, o ponto final da formosura. Ao escrever o poema da beleza feminina, Deus havia posto, ali, a última palavra do derradeiro capítulo.

            Os anos foram-se, porém, sucedendo, uns aos outros, e como gotas da mesma clepsidra; e o certo é que, aos vinte e oito, a moça não havia encontrado marido. Amigas mais feias, ou, antes menos bonitas, iam, uma a uma, recebendo o seu noivo, constituindo o seu lar, multiplicando o seu sangue; e ela, somente ela, de tantas que eram, já se deixava ficar na casa de seu pai, cercada de admiradores, atordoada de lisonja, mas sem ver um homem que  a convidasse, leal e sincero, para constituição legal de um ninho em comum. A Belita Simpson, que não tinha os seus olhos nem o seu sorriso, havia encontrado o Dr. Mascarenhas, advogado estudioso e jovem, e lá andava pela Europa em passeio de núpcias, percorrendo as cidades, experimentando os climas, visitando os museus. A Alice Martins era, agora, mme. Lopes Taveira, arrastando pelo braço, nos salões e na Avenida, o grande médico seu marido. A Totinha se casara com um deputado, e dava empregos, e a Tecla Meireles com um capitalista, e dava recepções. Só ela, que fora a mais graciosa, a mais elegante, e mais cobiçada, ali estava sozinha no seu leito de solteira, sentindo aproximar-se, após uma alvorada chilreante de pássaros, uma tarde triste, lúgubre, amortalhada em cinza e silêncio. Onde andava com a sua matilha e com os seus pajens o seu Príncipe Encantado, que não vinha rápido, alarmando a floresta com as buzinas de caça, ao encontro da sua Princesa Adormecida?

            Sem irmãs nem irmãos, que lhe dessem o conforto de uns sobrinhos pequeninos, Fernandinha sentia-se oprimir, afogar, asfixiar, pelo instinto maternal do coração. O pai, alquebrado, não podia mais conduzi-la, com tanta frequência, como dantes, a festas, a passeios, a teatros. Uma primeira ruga riscou-lhe a fronte lisa, partindo, como um fio telegráfico sem destino, do canto dos olhos. Combatida à força de loções, de unguentos, de pomadas, multiplicou-se, dividiu-se, repartiu-se abrindo novos caminhos para as lágrimas. E foi nessa idade, com o sol da mocidade em franco declínio, que Fernandinha adormeceu e teve uma noite, um sonho, que a desiludiu.

            Ao fechar os olhos, humedecidos em torno por uma loção que lhe haviam receitado, sentiu-se, de repente, transportada a uma grande campina, no fim da qual ressoavam harpas e cítaras, que ela procurava e não via. Embevecida, olhava para o lado de onde lhe vinham aquelas vozes embaladoras, quando sentiu, de repente, que alguém lhe tocava o ombro. Voltou-se, assustada, e caiu de joelhos, gemendo:

            - Minha madrinha! Minha Madrinha! Amparai-me.

            Ao seu lado, radiosa e doce, mal pisando a terra, sorria a imagem de Santa Rosa de Lima, sua madrinha e protetora, à qual havia rezado contritamente, aflitamente, antes de adormecer, pedindo a graça de um marido. Sorriso nos lábios, aureola à cabeça, mãos sobre o peito, a Santa Rosa fitava-a com ternura, quando, carinhosa, ordenou:

            - Minha filha, vem...

            E puseram-se a andar pela campina, uma ao lado da outra, mas tão leves, tão brandas, tão ligeiras, as duas, que nem pesavam sobre o relvado orvalhado. Súbito, ouviram vozes. A planície havia desaparecido e Fernandinha estava, agora, diante de um grande poço, em torno do qual se aglomeravam, apertando-se, empurrando-se, disputando, dezenas, centenas, milhares de moças. Espremendo uma, afastando outra, a rapariga chegou à beira do abismo e viu: de dentro saía uma corda, puxada por um sacerdote, na qual vinha amarrado, de sete em sete palmos um homem, que as mulheres, em cima, recebiam debaixo de gritaria.

            - Que é isto? Indagou, tímida, Fernandinha, a uma desconhecida que lhe ficara ao lado.

            - Então você aqui e não sabe?

            E como percebesse a sinceridade daquela pergunta:

            - Isso aqui é o poço dos maridos, o lugar de onde eles vêm. Essas moças que aqui vê, estão esperando cada uma aquele que lhe é destinado.

            - E a senhora já encontrou o seu? – Indagou Fernandinha admirada.

            A outra baixou os olhos, e confessou:

            - Não, senhora. Estou aqui há doze anos. Felizmente ainda não perdi a esperança...

            A rapariga ia rir da sua vizinha quando seus olhos descobriram, do outro lado do poço, várias fisionomias amigas, debruçadas, todas, para o fundo insondável do abismo. Eram Abelita Simpson, Alice Martins, Dorinha Tavares, a Abgail Queiróz, a Ninita, a Maria da Penha, a Lúcia, a Cidinha, a Tude, a Graziela... E a medida que a corda subia, puxada incessantemente pelo sacerdote, desgarrava-se dela  um homem jovem, ou velho, feio, bonito, a cujo pescoço pulara logo um vulto feminino, que nunca o tinha visto, mas que o esperava ansiosamente à beira do poço. E assim viu ela sair o Dr. Mascarenhas, o Lopes Taveira, o comandante Maia Cunha, o Dr. Casemiro Alves, o Tenente Alberto Wellington, em cujos braços se atiraram  logo, a Belita, a Alice, a Tecla, a Totinha, a Maria da Graça, que lá se iam, felizes, pela campina com seus maridos..

            De repente, Fernandinha sentiu uma agitação íntima, um susto, uma inquietação deliciosa, uma espécie de pressentimento. Uma vontade de fugir, de esquivar-se, agitou-lhe os nervos, mas os pés a detiveram, autoritários, no mesmo lugar. Alguma coisa de grave, de inesperado, ia, necessariamente acontecer. E estava ela nessa angústia, nessa tortura, encantada, quando a Santa, sua madrinha, lhe apareceu, de novo, anunciando-lhe:

            - Minha filha, olha para o fundo do poço. Teu noivo, o homem que te é destinado para marido, está para chegar. É o oitavo, depois deste que saiu agora.

            O ímpeto de Fernandinha foi o de atirar-se à Santa, abraçando-a, apertando-a, cobrindo-a de beijos gulosos, de furiosa gratidão. Era preciso, porém, olhar para o fundo do poço, e receber com os olhos, de longe, o seu prometido; a ansiedade dominou-se, curvando-se sobre o abismo. Debruçada para dentro, contou os vultos que se divisavam agarrados à corda!

            - Um... dois... três... quatro... cinco... seis... sete... oito...

            Era aquele. De longe, na meia escuridão, não lhe podia divisar as feições, nem avaliar a idade. O coração batia-lhe, inquieto, sôfrego, descompassado. Um suor frio corria-lhe por todo o corpo, numa vertigem. As pernas tremiam-lhe, mal sustendo o peso do busto amparado ao muro do poço. A manivela continuava porém, a rodar, manejada pelo padre, e a corda a subir trazendo gente. Agora faltavam apenas quatro. Ele era o quinto.

            Apesar da penumbra, Fernandinha via-lhe, já, as feições. Era jovem, sim! Jovem e bonito. Na sua coquetearia instintiva a moça levou as duas mãos ao cabelo, afofando o penteado. Mais um movimento da manivela e a claridade exterior atingiu. Chicoteado pelo jato de luz o rapaz ergueu o rosto, e encontrando, em cima, os olhos dela, encarou-a e sorriu. Fernandinha quase desmaia de gozo, de prazer, de ventura. Toda ela era alvíssaras de carne, alvíssaras de nervo, alvíssaras de coração. Agora, ele era o segundo. Olhos nos olhos, embebidos um no outro, as suas mãos já se tocavam quase.

            Fernandinha sorria e chorava. Mais uma volta da manivela e estaria ele nos seus braços. Esperava, como se fosse um século, a passagem deste grão de areia na ampulheta da eternidade, quando um grito reboou alarmando a multidão.

            - Fujam! Fujam! – Avisou alguém.

            A massa recuou, espavorida, deixando Fernandinha, sozinha, à beira do poço.

            - A corda vai partir-se! – bradou a mesma voz com terror. Atordoada, a moça voltou-se, e viu. Um pouco acima de sua cabeça no ponto que passava pelo carretel, o cabo desfiava-se, rápido, ameaçando romper-se. Soltando um grito, a rapariga estendeu as mãos, aflita, louca, desesperada, para o fundo do poço. Era, porém, tarde. Rodopiando com o peso, o cabo se havia distorcido de repente, estalando num ruído seco, atirando, com um estrondo surdo, a sua carga humana, no fundo do abismo.

            Um grito de raiva, de angústia, de dor alucinante, alarmou, àquela hora da noite a família Sobreira. Pessoas da casa acorreram, em trajes de dormir.

            Curvada para fora do leito, os braços estendidos para o chão, o rosto lavado em lágrimas, Fernandinha chorava nervosamente, aflitamente, agoniadamente, no seu primeiro ataque de histeria.

(CONTOS DE ALCOVA - Dezembro de 1963)
Compilados por Yves Idílio

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HUMBERTO DE CAMPOS

          Sem sombra de dúvidas HUMBERTO DE CAMPOS VERAS foi quem, dentre os escritores brasileiros, dominou com maior mestria o ensaio e a novela.
           Atual, perene, possui aquele dom indescritível que faz as grandes obras permanecerem sempre atuais, sempre vivas...
            Natural do Maranhão impregnou suas páginas de uma nostalgia, de um humanismo pungente característico dos naturais daquela região.
            Neste “Poço de Maridos”, ele se revela sarcástico, mordaz, cruel mesmo, mas sem nunca fugir ao realismo tão seu e do qual foi um dos pioneiros no Brasil.

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Terceiro ocupante da Cadeira 20 da ABL, eleito em 30 de outubro de 1919, na sucessão de Emílio de Menezes e recebido pelo Acadêmico Luís Murat em 8 de maio de 1920. Humberto de Campos (H. de C. Veras), jornalista, crítico, contista e memorialista, nasceu em Miritiba, hoje Humberto de Campos, MA, em 25 de outubro de 1886, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 5 de dezembro de 1934.

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