Os anos foram-se, porém, sucedendo,
uns aos outros, e como gotas da mesma clepsidra; e o certo é que, aos vinte e
oito, a moça não havia encontrado marido. Amigas mais feias, ou, antes menos
bonitas, iam, uma a uma, recebendo o seu noivo, constituindo o seu lar,
multiplicando o seu sangue; e ela, somente ela, de tantas que eram, já se
deixava ficar na casa de seu pai, cercada de admiradores, atordoada de lisonja,
mas sem ver um homem que a convidasse,
leal e sincero, para constituição legal de um ninho em comum. A Belita Simpson,
que não tinha os seus olhos nem o seu sorriso, havia encontrado o Dr.
Mascarenhas, advogado estudioso e jovem, e lá andava pela Europa em passeio de
núpcias, percorrendo as cidades, experimentando os climas, visitando os museus.
A Alice Martins era, agora, mme. Lopes Taveira, arrastando pelo braço, nos
salões e na Avenida, o grande médico seu marido. A Totinha se casara com um
deputado, e dava empregos, e a Tecla Meireles com um capitalista, e dava
recepções. Só ela, que fora a mais graciosa, a mais elegante, e mais cobiçada,
ali estava sozinha no seu leito de solteira, sentindo aproximar-se, após uma
alvorada chilreante de pássaros, uma tarde triste, lúgubre, amortalhada em
cinza e silêncio. Onde andava com a sua matilha e com os seus pajens o seu
Príncipe Encantado, que não vinha rápido, alarmando a floresta com as buzinas
de caça, ao encontro da sua Princesa Adormecida?
Sem irmãs nem irmãos, que lhe
dessem o conforto de uns sobrinhos pequeninos, Fernandinha sentia-se oprimir,
afogar, asfixiar, pelo instinto maternal do coração. O pai, alquebrado, não
podia mais conduzi-la, com tanta frequência, como dantes, a festas, a passeios,
a teatros. Uma primeira ruga riscou-lhe a fronte lisa, partindo, como um fio
telegráfico sem destino, do canto dos olhos. Combatida à força de loções, de
unguentos, de pomadas, multiplicou-se, dividiu-se, repartiu-se abrindo novos
caminhos para as lágrimas. E foi nessa idade, com o sol da mocidade em franco
declínio, que Fernandinha adormeceu e teve uma noite, um sonho, que a
desiludiu.
Ao fechar os olhos, humedecidos em
torno por uma loção que lhe haviam receitado, sentiu-se, de repente,
transportada a uma grande campina, no fim da qual ressoavam harpas e cítaras,
que ela procurava e não via. Embevecida, olhava para o lado de onde lhe vinham
aquelas vozes embaladoras, quando sentiu, de repente, que alguém lhe tocava o
ombro. Voltou-se, assustada, e caiu de joelhos, gemendo:
- Minha madrinha! Minha Madrinha!
Amparai-me.
Ao seu lado, radiosa e doce, mal
pisando a terra, sorria a imagem de Santa Rosa de Lima, sua madrinha e protetora,
à qual havia rezado contritamente, aflitamente, antes de adormecer, pedindo a
graça de um marido. Sorriso nos lábios, aureola à cabeça, mãos sobre o peito, a
Santa Rosa fitava-a com ternura, quando, carinhosa, ordenou:
- Minha filha, vem...
E puseram-se a andar pela campina,
uma ao lado da outra, mas tão leves, tão brandas, tão ligeiras, as duas, que
nem pesavam sobre o relvado orvalhado. Súbito, ouviram vozes. A planície havia
desaparecido e Fernandinha estava, agora, diante de um grande poço, em torno do
qual se aglomeravam, apertando-se, empurrando-se, disputando, dezenas,
centenas, milhares de moças. Espremendo uma, afastando outra, a rapariga chegou
à beira do abismo e viu: de dentro saía uma corda, puxada por um sacerdote, na
qual vinha amarrado, de sete em sete palmos um homem, que as mulheres, em cima,
recebiam debaixo de gritaria.
- Que é isto? Indagou, tímida,
Fernandinha, a uma desconhecida que lhe ficara ao lado.
- Então você aqui e não sabe?
E como percebesse a sinceridade
daquela pergunta:
- Isso aqui é o poço dos maridos, o
lugar de onde eles vêm. Essas moças que aqui vê, estão esperando cada uma
aquele que lhe é destinado.
- E a senhora já encontrou o seu? –
Indagou Fernandinha admirada.
A outra baixou os olhos, e
confessou:
- Não, senhora. Estou aqui há doze
anos. Felizmente ainda não perdi a esperança...
A rapariga ia rir da sua vizinha
quando seus olhos descobriram, do outro lado do poço, várias fisionomias
amigas, debruçadas, todas, para o fundo insondável do abismo. Eram Abelita
Simpson, Alice Martins, Dorinha Tavares, a Abgail Queiróz, a Ninita, a Maria da
Penha, a Lúcia, a Cidinha, a Tude, a Graziela... E a medida que a corda subia,
puxada incessantemente pelo sacerdote, desgarrava-se dela um homem jovem, ou velho, feio, bonito, a
cujo pescoço pulara logo um vulto feminino, que nunca o tinha visto, mas que o
esperava ansiosamente à beira do poço. E assim viu ela sair o Dr. Mascarenhas,
o Lopes Taveira, o comandante Maia Cunha, o Dr. Casemiro Alves, o Tenente
Alberto Wellington, em cujos braços se atiraram
logo, a Belita, a Alice, a Tecla, a Totinha, a Maria da Graça, que lá se
iam, felizes, pela campina com seus maridos..
De repente, Fernandinha sentiu uma
agitação íntima, um susto, uma inquietação deliciosa, uma espécie de
pressentimento. Uma vontade de fugir, de esquivar-se, agitou-lhe os nervos, mas
os pés a detiveram, autoritários, no mesmo lugar. Alguma coisa de grave, de
inesperado, ia, necessariamente acontecer. E estava ela nessa angústia, nessa
tortura, encantada, quando a Santa, sua madrinha, lhe apareceu, de novo, anunciando-lhe:
- Minha filha, olha para o fundo do
poço. Teu noivo, o homem que te é destinado para marido, está para chegar. É o
oitavo, depois deste que saiu agora.
O ímpeto de Fernandinha foi o de
atirar-se à Santa, abraçando-a, apertando-a, cobrindo-a de beijos gulosos, de
furiosa gratidão. Era preciso, porém, olhar para o fundo do poço, e receber com
os olhos, de longe, o seu prometido; a ansiedade dominou-se, curvando-se sobre
o abismo. Debruçada para dentro, contou os vultos que se divisavam agarrados à
corda!
- Um... dois... três... quatro...
cinco... seis... sete... oito...
Era aquele. De longe, na meia
escuridão, não lhe podia divisar as feições, nem avaliar a idade. O coração
batia-lhe, inquieto, sôfrego, descompassado. Um suor frio corria-lhe por todo o
corpo, numa vertigem. As pernas tremiam-lhe, mal sustendo o peso do busto
amparado ao muro do poço. A manivela continuava porém, a rodar, manejada pelo
padre, e a corda a subir trazendo gente. Agora faltavam apenas quatro. Ele era
o quinto.
Apesar da penumbra, Fernandinha
via-lhe, já, as feições. Era jovem, sim! Jovem e bonito. Na sua coquetearia
instintiva a moça levou as duas mãos ao cabelo, afofando o penteado. Mais um
movimento da manivela e a claridade exterior atingiu. Chicoteado pelo jato de
luz o rapaz ergueu o rosto, e encontrando, em cima, os olhos dela, encarou-a e
sorriu. Fernandinha quase desmaia de gozo, de prazer, de ventura. Toda ela era
alvíssaras de carne, alvíssaras de nervo, alvíssaras de coração. Agora, ele era
o segundo. Olhos nos olhos, embebidos um no outro, as suas mãos já se tocavam
quase.
Fernandinha sorria e chorava. Mais
uma volta da manivela e estaria ele nos seus braços. Esperava, como se fosse um
século, a passagem deste grão de areia na ampulheta da eternidade, quando um
grito reboou alarmando a multidão.
- Fujam! Fujam! – Avisou alguém.
A massa recuou, espavorida,
deixando Fernandinha, sozinha, à beira do poço.
- A corda vai partir-se! –
bradou a mesma voz com terror. Atordoada, a moça voltou-se, e viu. Um pouco
acima de sua cabeça no ponto que passava pelo carretel, o cabo desfiava-se,
rápido, ameaçando romper-se. Soltando um grito, a rapariga estendeu as mãos,
aflita, louca, desesperada, para o fundo do poço. Era, porém, tarde. Rodopiando
com o peso, o cabo se havia distorcido de repente, estalando num ruído seco,
atirando, com um estrondo surdo, a sua carga humana, no fundo do abismo.
Um grito de raiva, de angústia, de
dor alucinante, alarmou, àquela hora da noite a família Sobreira. Pessoas da
casa acorreram, em trajes de dormir.
Curvada para fora do leito, os
braços estendidos para o chão, o rosto lavado em lágrimas, Fernandinha chorava
nervosamente, aflitamente, agoniadamente, no seu primeiro ataque de histeria.
(CONTOS DE ALCOVA - Dezembro de
1963)
Compilados por Yves Idílio
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HUMBERTO DE CAMPOS
Sem sombra de dúvidas HUMBERTO DE
CAMPOS VERAS foi quem, dentre os escritores brasileiros, dominou com maior
mestria o ensaio e a novela.
Atual, perene, possui aquele dom
indescritível que faz as grandes obras permanecerem sempre atuais, sempre
vivas...
Natural do Maranhão impregnou suas
páginas de uma nostalgia, de um humanismo pungente característico dos naturais
daquela região.
Neste “Poço de Maridos”, ele se
revela sarcástico, mordaz, cruel mesmo, mas sem nunca fugir ao realismo tão seu
e do qual foi um dos pioneiros no Brasil.
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Terceiro ocupante da Cadeira 20 da ABL, eleito em 30 de outubro de
1919, na sucessão de Emílio de Menezes e recebido pelo Acadêmico Luís Murat em
8 de maio de 1920. Humberto de Campos (H. de C. Veras), jornalista,
crítico, contista e memorialista, nasceu em Miritiba, hoje Humberto de Campos,
MA, em 25 de outubro de 1886, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 5 de dezembro
de 1934.
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