A Cidade e o Coronavírus
Cyro de Mattos
Quando a cidade comemora outro ano de emancipação política,
falam do progresso e vocação de seu povo para o trabalho. A cidade vive o clima
de festa e desperta muito cedo com a descarga de foguetes que crepitam no céu.
Os moradores sabem que a cidade é antes de tudo raiz que se aninha no peito e
seiva que escorre no esforço dos dias.
É trama com ânsia e
sonho. Acontece nas mãos generosas do padeiro, no feijão preparado pela
cozinheira, que o ano todo tem calo e calor nas mãos. Na colher do pedreiro. No
sermão do padre, na filarmônica tocando na praça, convidando o povo para voar
na valsa. Na cuia do cego, na cartilha da professora. Na bola do menino que
quebrou a vidraça do vizinho. Com os namorados que passeiam de mãos dadas no
jardim. Na rua, na loja, no armazém, no banco, a cidade com o seu modo de
estipular o mundo.
Na guerra da palavra em tempo de eleições quando a vitória é
uma questão de vida ou morte. No jornal televisivo que dá a notícia boa ou má,
sempre veloz, indo de canto a canto. Nos dias de hoje, desse terrível
coronavírus e de um governo executivo que se nutre de ódio com um presidente
incendiário, certamente a notícia fere e deixa o brasileiro atônito.
Com sangue nas veias que sangram todos os dias, a cidade
anda às vezes triste, os pés descalços, adormece embaixo de marquises. Atropela
na dura lei da vida, converte-se em tempo de violência e miséria, que cada vez
mais assusta.
Com vários jornais, emissoras de rádio, canais de televisão,
colégios, hospitais, ruas e avenidas asfaltadas, universidade como brasa
verdejante em seu novo dizer da lavra, a cidade vive agora a época da
automação, da moderna sociedade de massas. Sabe que hoje o mundo é uma aldeia
global, não podendo desviar-se dessa sintonia. Mas na cidade ainda encontramos
a maneira sensível de alguns conceberem a vida com a razão e a emoção na mais
completa leitura do mundo através da arte da palavra. Existem aqueles que lambem as palavras e se
alucinam. Falam de coisas agudas. Tentam com a palavra permanecer na vida,
negando a morte.
Mas ninguém imaginaria que a cidade fosse interrompida no
seu fluxo de vida com essa guerra do coronavírus. Agora todos andam de máscara
quando uma necessidade impõe que vá comprar algo necessário na farmácia. Em nossas casas vivemos recolhidos na
quarentena. A notícia na televisão
informa os estragos que o coronavírus vem fazendo aos frágeis seres humanos. A
cidade está vazia. Vivemos um clímax de filme de ficção científica. De pesadelo
e desalento. As ruas desertas. Impiedoso,
sorrateiro, veloz, o coronavírus ataca todo o planeta e não se satisfaz com as
vítimas que mata a todo instante.
Mas venceremos essa
impiedosa guerra bacteriana, esperando-se que no próximo ano estejamos
comemorando o dia de aniversário da cidade com abraços, euforia de risos no
rosto aberto de contente, sem faltar as badaladas do sino na catedral de São
José, o padroeiro da cidade, e a descarga de foguetes no céu.
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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Doutor Honoris Causa da
Universidade Estadual de Santa Cruz. Possui prêmios literários expressivos no
Brasil e exterior. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia.
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