O Romancista Afrânio Peixoto
Cyro de Mattos
Ainda não
se configura no romance Maria Bonita, de
Afrânio Peixoto, o legítimo homem do cacau, ávido por ser o dono de um fruto poderoso,
fomentador de riquezas, motivador de
tocaias e lutas sangrentas. O cacau não
é assim determinante de conflitos extremos na teia romanesca de Maria
Bonita, ficando visível que a lavra dos frutos dourados à
época dava os seus primeiros passos sem a épica de um
parto difícil, que se fez na terra fértil, com a mata ainda não
descoberta e cercada de perigo. O cacau
concorre em Maria Bonita somente para que a terra seja apresentada com uma cor
diferente, insipiente como fonte de riqueza, basta notar que as amêndoas do fruto eram secadas
no tabuleiro com rodas e trilhos de madeira, transportadas depois para Canavieiras através da canoa, pelo rio Pardo.
Com
um caldeamento humano heterogêneo,
formado por gente de nível social e cultural baixo, algumas pessoas se distinguiam no
arraial pela educação, préstimos
provados, condição econômica
privilegiada como donos de fazendas. Na
relação dos personagens nucleares, viviam na fazenda
Boa Vista como os donos da terra os
Moreira, representados por Dona Mariana, matriarca autoritária, e o marido Quinquim, “homenzinho murcho, de
fisionomia inexpressiva, barba
grisalha’, de temperamento pusilânime. A família completava-se com os três filhos, Pequenina, Diogo e Luís. A matriarca
reunia nas mãos todos os poderes, era sisuda, impetuosa, enquanto o
marido, a prole, os agregados e o povo de Jacarandá respeitavam a sua vontade forte.
Maria Bonita
é um romance de amor com linguagem
agradável, equilibrado nas descrições do ambiente, que se presta à ocorrência das cenas, personagens
típicos e costumes mostrados nas
linhas de seu enredo com infiltrações
românticas. Apresenta Maria Bonita como um tipo de criatura bem descrita nos traços externos e interiores, que lhe dão
crédito para ser inscrita com a sua beleza e caráter na galeria
dos personagens femininos de nossa prosa de ficção.
Luís apaixona-se
por Maria Bonita, reconhecida por Dona
Mariana como criatura de origens indignas,
classe social inferior, sem a grandeza aristocrática para casar com um de
seus filhos. Em seus rompantes neuróticos, a arrogante matriarca alardeava ser descendente de
Diogo Álvares Cabral, o Caramuru, e
Catarina Paraguaçu, o casal que
representava a origem da nobre família brasileira. Filho seu não estava destinado para se casar
com qualquer grapiunazinha*, gente de nível baixo.
Quando mais
precisava da proteção e carinho, Maria
Bonita se vê abandonada por Luís, que
prefere fugir a enfrentar situação adversa, mostrando-se sem brios nessa
hora em que o amor cobra coragem de quem
deve se mover pelo sentimento forte do coração apaixonado. Obedeceu
às ordens da mãe e vai para a
Capital terminar os estudos.
De retorno a Cajazeira toma conhecimento
que Maria Bonita estava casada com João, homem
atencioso, leal, dedicado à
esposa e ao filho que tinha com ela. Sem
conseguir abafar a vontade de se
encontrar com Maria Bonita, sente que
não ficara esquecido o seu amor verdadeiro.
O final com ritmo de tragédia, que obedece às determinantes do destino,
cujas forças não se pode mudar, acontece com o desespero de Maria Bonita. As mãos em garra arranham o rosto num gesto alucinado, “embora
sem culpa, era a causa de tudo.” Culpa
de tanta desgraça e todo o mal.
Afrânio
Peixoto é herdeiro moderado do Machado de Assis analista e do José Alencar
descritivo. Usa os diálogos no momento certo com bom aproveitamento, recorre
aos versos dos poetas populares e
os insere no texto, tornando a
narrativa prazerosa. Estiliza a
linguagem em nível de como é falada e da norma culta codificada pelo gramático, sem transmudá-la
como cópia integral da fala do povo corrompida, mas que faz comunicativa a língua na sua dinâmica.
Se o espaço do
romance regionalista configura-se no
alcance do ambiente, tipos e costumes, em Maria Bonita a criatura humana
mostra-se como o foco dos conflitos da
sua própria condição, caracterizada pela
beleza e formosa presença de mulher. Pelo conteúdo vê-se que o romance tem
como centro a beleza de uma mulher, que
desde criança os que a conhecem
querem bem, embora o mundo não perdoe a ninguém quando se
é dono de atraente atributo. Certo
trecho do romance informa que “é motivo de infelicidade não ser quase igual a
todo mundo ou a muita gente no mundo”. A
observação completa-se numa aferição de
essência dramática sobre a vida. “A beleza, o talento, a riqueza, são dons
funestos: despertam cobiça e inveja, nunca simpatia e afeição.” (O artigo ora
publicado integra o livro Prosa e Poesia no Sul da Bahia, um
testemunho crítico, reunindo estudos sobre 47 prosadores e poetas do sul da
Bahia, no prelo da Editora Via Litterarum).
* Grapiunazinha, diminutivo de grapiúna, termo de origem indígena,
que significa os que chegaram ao sul da Bahia no tempo da conquista e
povoamento da terra.
...............
Cyro de Mattos,
escritor e poeta. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual
de Santa Cruz. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do
Brasil, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna. Autor
premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.
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