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quarta-feira, 17 de junho de 2020

MARIA DO SOCORRO – Ariston Caldas


            Doutor Ricardo ouviu-me com muita atenção quando lhe expus meus sintomas. Eu disse-lhe que sentia minhas mãos esfriando quando à tarde aproximava se e, em seguida, vinham uns arrepios súbitos, e uma vontade de matar alguém enchia meus ânimos; acrescentei, ainda, que a figura do sujeito gordo surgia em minha cabeça, enquanto uma mulher num “baby Doll” aparecia misteriosa. Vinha-me uma sensação de desmaio, minha temperatura subia, um suor frio umedecia meu corpo. Depois de algum tempo nessa agonia súbita, a situação ia-se normalizando, minha lucidez voltava.

           Após longo questionário o médico receitou-me uma pílulas verdes, garantindo que tudo ia melhorar, passei a dormir dez horas por dia e as reações esquisitas passaram a atormentar-me somente em sonhos como pesadelos. Reparando bem, eu concluí que as crises pareciam relacionadas com ocorrência entre mim, um homem gordo e Maria do Socorro, minha mulher. Sofri o mal por muito tempo, andei perneando à toa pela rua, escorado nas esquinas e só voltava para casa quando as crises se anunciavam. Começavam pelos vexames, minhas mãos esfriavam, a figura do indivíduo gordo surgia ao lado da mulher; eu ficava perturbado, a febre chegava e as coisas iam-se embaralhando em meu juízo. Tudo isso repetia-se havia algum tempo e quem assistia comentava que meus olhos ficavam vermelhos, com ar de espanto.

           Não escrevi estas linhas com o intuito de transmiti-las para ninguém, mas tão somente como registro das ocorrências que me alucinavam e por exigência do médico, certamente para seu fichário de doidos. O que está aqui anotado é realmente uma cópia da verdade, o motivo que levou o doutor receitar-me as pílulas verdes.

            Pois bem, tudo começou numa tarde muito quente, quando eu descansava com Maria do Socorro no quarto que dá para a varanda do quintal; bateram na porta da rua. Ela encontrava-se calma, sem os estalos costumeiros. Num berço ao lado nossa filha Vilma resmungava às voltas com uma chupeta entrelaçada com uma fita vermelha; minha cabeça doía. No dia anterior eu relutara com Maria do Socorro para não ir à praia, ela insistiu e eu fui, agora lá estava chiando a rebombada; nem pude ir para o trabalho. Após o almoço fui direto para a cama, a cabeça em brasa. Depois que arrumou as coisas na cozinha ela veio cantarolando para o quarto e deitou-se ao meu lado, falando coisas bestas sobre a irmã que gostava de tecer encrencas com o marido.

            A dor de cabeça passou mas meu corpo parecia uma pamonha. Pelo suporte da janela do lado eu olhava as Palmas de um coqueiro indo e vindo ao sabor do vento; Maria do Socorro olhava, absorta, para o telhado. Estaria pensando ainda nas encrencas da irmã? Sentia-me meio zonzo, o telhado parecia-me opressivo, o coqueiro continuava balançando lento no morro em frente. O corpo de Socorro era perfumado e o cheiro ativo subia para meu nariz; pela janela entrava uma réstia de sol. Quando eu era menino gostava de olhar réstias de luz entrando pelas gretas do telhado, por isso, naquele momento, lembrei da minha infância. Na cozinha um objeto caiu, estridente, parecendo uma panela, provavelmente malinação de Marujo, gato que Maria do Socorro recebera de presente não sei de quem. Ela não deu importância ao baque na cozinha. No escritório estariam reparando minha falta, nem mandei avisar nada à empresa. Nunca gostei de deitar-me depois do almoço, hábito pelo trabalho; se me deito, fico pensando asneiras, revivendo assuntos que me incomodam. Naquela tarde quente, minha cabeça doendo, um coqueiro tremulando em frente, transportei-me para um passado nem muito antigo; Maria do Socorro passava séria, de saia curta, pernas bem-feitas, passos lentos, cabeça inclinada para o chão. Depois, namoramos, casamos e Vilma nasceu. Ora, quantas vezes eu já teria lembrado dessas coisas!

            Minha cunhada tinha o gênio pior que o de Maria do Socorro. Sujeitinha pequena, nervosa, aperreada; não gostava de mim nem entendia que o marido fosse homem pobre; só falava em luxo, e achava que ele tinha obrigação de mantê-la num padrão alto; mas iam vivendo, graça ao bom caráter do rapaz. No dia em que ela se azedava, as coisas ficavam pretas de verdade; no auge do escândalo, Maria do Socorro corria ao meu encontro, gritando: “Acuda, Juvêncio, aquele sujeito quer matar Berenice!”. Eu saía todo aporrinhado, sabendo que tudo não passava de presepada das duas. Lá estava Berenice descalça, cabelo assanhado, derretendo-se em lágrimas. Quando o bate-boca acalmava, Socorro embebia um algodão em água canforada levando-o ao nariz de Berenice que fingia um desmaio, depois esfregava-lhe o capucho ainda úmido na fronte. Sabiam escandalizar.

            Vilma havia completado seis meses; não era criança doente, mas comia pouco e o médico dizia ser uma menina normal. Mesmo assim Maria do Socorro trazia-me de corda curta e eu tinha que levar a garota ao médico quase toda semana. Quando o doutor não passava uma receita, ela azedava: “minha filha, assim, finda morrendo! Esse médico parece um charlatão”. Esbravejava.

            Fiquei satisfeito com o nascimento de Vilma. Além da novidade, trouxe-me a esperança de que Maria do Socorro mudaria de comportamento. Tendo de quem cuidar, ela deixaria as andanças pela rua e pelas casas vizinhas, afastando-se mais de Berenice. Pois bem, naquela tarde de calor eu remoía essas coisas, ouvia os resmungos de Vilma no berço ao lado; olhava um coqueiro tremulando ao vento. Bem, como eu ia explicando, bateram na porta da rua, pancadas fortes, repetidas. Tranquila, Socorro levantou-se, vestiu a saia, calçou as sandálias e saiu abotoando-se. Sem que ela pressentisse, eu a segui à distância, cauteloso para não ser notado; Socorro abriu a janela por metade, passando a entender-se com alguém do lado de fora. Dei-lhe um chega pra lá e ainda pude ver um homem gordo vestido de branco, com chapéu de abas curtas, paletó apertado com uma cinta pelo meio. O vi pelas costas, passadas miúdas e apressadas; na esquina tomou um carro que parecia esperá-lo. Desconfiada, Maria do Socorro tentou explicar-se antes que eu indagasse-lhe qualquer coisa: “ele queria saber onde fica a casa de Berenice”, disse, baixando a cabeça. Fiquei apreensivo. Em verdade, o sujeito não queria saber de casa de ninguém, mas ver Socorro. Pensei com firmeza. Esqueci das palmas do coqueiro e da réstia de sol que me lembrou da infância. Ela, sem dizer mais nada, rumou para o quarto, tirou a saia e deitou-se de “baby Doll”, esticando as pernas, de olho duro para o telhado. Vilma choramingou de novo, certamente sem conseguir ajeitar a chupeta. Senti uma pontada na cabeça e minhas mãos começaram a esfriar; minha vista escureceu. As pontadas no miolo não esbarravam um minuto, infernizando-me. Será que o homem gordo teria vindo à procura de Berenice? Quem seria ele e por que veio bater em minha porta? Cochichou com minha mulher e saiu de supetão, apressado como quem foge. Eram conjecturas embaralhadas. O que havia em tudo isso? Maria do socorro estaria me traindo? No guarda-roupa do meu quarto havia um revólver entupido de balas, um 38 seguro; com ele eu poderia pintar o diabo, dar um tiro na testa de Socorro ou no sujeito gordo. Mas eu não sabia quem era ele nem porque havia conversado com minha mulher. Queria saber a casa de Berenice. Mentira; pensei angustiado, traído, um corno! O que eu deveria fazer? Por onde iniciar uma investigação? Não encontrava caminho. Seria melhor interrogar Maria do Socorro, espremê-la até uma explicação razoável. De súbito ela levantou-se e foi para a cozinha onde ficou cantarolando e bulindo nas panelas; levantei-me e fui encontrá-la mexendo mingau para Vilma. Minhas mãos continuavam frias, corpo arrepiando e uma sensação de tontice rondava minha cabeça. Entrei para meu quarto, olhei para o revólver no guarda-roupa. O homem gordo insistia em meu pensamento. Manuseei a arma e tornei a colocá-la no mesmo lugar. Acendi um cigarro e saí em direção à varanda do fundo.

            “É verdade, já estou com uma filha de seis meses. É franzina, mas saudável e bonitinha”, eu pensava. Como seria o nome do homem gordo? Olhando por trás parecia um porco baé. Suor frio tomava meu corpo e a vontade de matar Maria do Socorro voltava. Na verdade eu não teria coragem de coisa assim. Mais fácil daria um tiro no sujeito. Mas, por que matar? Eu queria era que Socorro desembuchasse aquela encrenca. O chão parecia distanciar-se de mim, como se à cama estivesse subindo para o telhado. Minha cabeça parecia cheia de grilos. Vinham novos arrepios, meu corpo esquentava. Socorro entrou novamente, assustei me. Calada, debruçou-se sobre o berço da menina e colocou-lhe a mamadeira na boca. Vilma choramingou. Fiquei olhando, abismado, para as pernas bem-feitas de Socorro.

            O doutor foi diminuindo as doses do remédio, a sonolência sumiu, minhas mãos não esfriaram mais e os arrepios desapareceram, assim como a vontade de matar uma pessoa. O homem gordo, para quem eu tinha um revólver cheio até a boca foi-se apagando aos poucos de minhas ideias.

            Nunca questionei o assunto com Maria do Socorro, minhas consultas com o médico jamais chegaram ao seu conhecimento; eu tomava os comprimidos verdes escondido dela. passei quatro meses engolindo as pílulas e mesmo depois da alta que o doutor me deu, continuei sentindo reações ocasionais, e com força de vontade consegui afugentar de mim as alucinações, graças, também à considerável ajuda psicológica do doutor Ricardo. Depois de tudo isso modifiquei meu comportamento em casa, relegando certos absurdos de Maria do Socorro, ora, mesmo assim, nossa vida continuou confusa, mas lhe vou suportando como Deus é servido. O que ocorreu naquela tarde entre nós dois e o sujeito gordo teria sido somente uma coincidência.

            A mamadeira de Vilma sumiu. Ela está completando agora três anos e anda falando coisas engraçadas. Socorro já lhe matriculou numa escolinha.

            Será que o homem gordo procurava mesmo era a casa de Berenice?


(LINHAS INTERCALADAS - 2ª EDIÇÃO)
Ariston Cardoso
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