Doutor Ricardo ouviu-me com muita
atenção quando lhe expus meus sintomas. Eu disse-lhe que sentia minhas mãos
esfriando quando à tarde aproximava se e, em seguida, vinham uns arrepios
súbitos, e uma vontade de matar alguém enchia meus ânimos; acrescentei, ainda,
que a figura do sujeito gordo surgia em minha cabeça, enquanto uma mulher num “baby
Doll” aparecia misteriosa. Vinha-me uma sensação de desmaio, minha temperatura
subia, um suor frio umedecia meu corpo. Depois de algum tempo nessa agonia
súbita, a situação ia-se normalizando, minha lucidez voltava.
Após longo questionário o médico
receitou-me uma pílulas verdes, garantindo que tudo ia melhorar, passei a
dormir dez horas por dia e as reações esquisitas passaram a atormentar-me
somente em sonhos como pesadelos. Reparando bem, eu concluí que as crises
pareciam relacionadas com ocorrência entre mim, um homem gordo e Maria do Socorro,
minha mulher. Sofri o mal por muito tempo, andei perneando à toa pela rua,
escorado nas esquinas e só voltava para casa quando as crises se anunciavam. Começavam
pelos vexames, minhas mãos esfriavam, a figura do indivíduo gordo surgia ao
lado da mulher; eu ficava perturbado, a febre chegava e as coisas iam-se
embaralhando em meu juízo. Tudo isso repetia-se havia algum tempo e quem
assistia comentava que meus olhos ficavam vermelhos, com ar de espanto.
Não escrevi estas linhas com o
intuito de transmiti-las para ninguém, mas tão somente como registro das
ocorrências que me alucinavam e por exigência do médico, certamente para seu
fichário de doidos. O que está aqui anotado é realmente uma cópia da verdade, o
motivo que levou o doutor receitar-me as pílulas verdes.
Pois bem, tudo começou numa tarde
muito quente, quando eu descansava com Maria do Socorro no quarto que dá para a
varanda do quintal; bateram na porta da rua. Ela encontrava-se calma, sem os
estalos costumeiros. Num berço ao lado nossa filha Vilma resmungava às voltas
com uma chupeta entrelaçada com uma fita vermelha; minha cabeça doía. No dia
anterior eu relutara com Maria do Socorro para não ir à praia, ela insistiu e
eu fui, agora lá estava chiando a rebombada; nem pude ir para o trabalho. Após
o almoço fui direto para a cama, a cabeça em brasa. Depois que arrumou as
coisas na cozinha ela veio cantarolando para o quarto e deitou-se ao meu lado,
falando coisas bestas sobre a irmã que gostava de tecer encrencas com o marido.
A dor de cabeça passou mas meu
corpo parecia uma pamonha. Pelo suporte da janela do lado eu olhava as Palmas
de um coqueiro indo e vindo ao sabor do vento; Maria do Socorro olhava,
absorta, para o telhado. Estaria pensando ainda nas encrencas da irmã? Sentia-me
meio zonzo, o telhado parecia-me opressivo, o coqueiro continuava balançando
lento no morro em frente. O corpo de Socorro era perfumado e o cheiro ativo
subia para meu nariz; pela janela entrava uma réstia de sol. Quando eu era
menino gostava de olhar réstias de luz entrando pelas gretas do telhado, por
isso, naquele momento, lembrei da minha infância. Na cozinha um objeto caiu,
estridente, parecendo uma panela, provavelmente malinação de Marujo, gato que
Maria do Socorro recebera de presente não sei de quem. Ela não deu importância
ao baque na cozinha. No escritório estariam reparando minha falta, nem mandei
avisar nada à empresa. Nunca gostei de deitar-me depois do almoço, hábito pelo
trabalho; se me deito, fico pensando asneiras, revivendo assuntos que me
incomodam. Naquela tarde quente, minha cabeça doendo, um coqueiro tremulando em
frente, transportei-me para um passado nem muito antigo; Maria do Socorro
passava séria, de saia curta, pernas bem-feitas, passos lentos, cabeça
inclinada para o chão. Depois, namoramos, casamos e Vilma nasceu. Ora, quantas
vezes eu já teria lembrado dessas coisas!
Minha cunhada tinha o gênio pior
que o de Maria do Socorro. Sujeitinha pequena, nervosa, aperreada; não gostava
de mim nem entendia que o marido fosse homem pobre; só falava em luxo, e achava
que ele tinha obrigação de mantê-la num padrão alto; mas iam vivendo, graça ao
bom caráter do rapaz. No dia em que ela se azedava, as coisas ficavam pretas de
verdade; no auge do escândalo, Maria do Socorro corria ao meu encontro,
gritando: “Acuda, Juvêncio, aquele sujeito quer matar Berenice!”. Eu saía todo
aporrinhado, sabendo que tudo não passava de presepada das duas. Lá estava
Berenice descalça, cabelo assanhado, derretendo-se em lágrimas. Quando o bate-boca
acalmava, Socorro embebia um algodão em água canforada levando-o ao nariz de
Berenice que fingia um desmaio, depois esfregava-lhe o capucho ainda úmido na
fronte. Sabiam escandalizar.
Vilma havia completado seis meses;
não era criança doente, mas comia pouco e o médico dizia ser uma menina normal.
Mesmo assim Maria do Socorro trazia-me de corda curta e eu tinha que levar a
garota ao médico quase toda semana. Quando o doutor não passava uma receita,
ela azedava: “minha filha, assim, finda morrendo! Esse médico parece um
charlatão”. Esbravejava.
Fiquei satisfeito com o nascimento
de Vilma. Além da novidade, trouxe-me a esperança de que Maria do Socorro
mudaria de comportamento. Tendo de quem cuidar, ela deixaria as andanças pela
rua e pelas casas vizinhas, afastando-se mais de Berenice. Pois bem, naquela
tarde de calor eu remoía essas coisas, ouvia os resmungos de Vilma no berço ao
lado; olhava um coqueiro tremulando ao vento. Bem, como eu ia explicando,
bateram na porta da rua, pancadas fortes, repetidas. Tranquila, Socorro
levantou-se, vestiu a saia, calçou as sandálias e saiu abotoando-se. Sem que
ela pressentisse, eu a segui à distância, cauteloso para não ser notado;
Socorro abriu a janela por metade, passando a entender-se com alguém do lado de
fora. Dei-lhe um chega pra lá e ainda pude ver um homem gordo vestido de
branco, com chapéu de abas curtas, paletó apertado com uma cinta pelo meio. O
vi pelas costas, passadas miúdas e apressadas; na esquina tomou um carro que
parecia esperá-lo. Desconfiada, Maria do Socorro tentou explicar-se antes que
eu indagasse-lhe qualquer coisa: “ele queria saber onde fica a casa de Berenice”,
disse, baixando a cabeça. Fiquei apreensivo. Em verdade, o sujeito não queria
saber de casa de ninguém, mas ver Socorro. Pensei com firmeza. Esqueci das palmas
do coqueiro e da réstia de sol que me lembrou da infância. Ela, sem dizer mais
nada, rumou para o quarto, tirou a saia e deitou-se de “baby Doll”, esticando
as pernas, de olho duro para o telhado. Vilma choramingou de novo, certamente
sem conseguir ajeitar a chupeta. Senti uma pontada na cabeça e minhas mãos
começaram a esfriar; minha vista escureceu. As pontadas no miolo não esbarravam
um minuto, infernizando-me. Será que o homem gordo teria vindo à procura de
Berenice? Quem seria ele e por que veio bater em minha porta? Cochichou com
minha mulher e saiu de supetão, apressado como quem foge. Eram conjecturas
embaralhadas. O que havia em tudo isso? Maria do socorro estaria me traindo?
No guarda-roupa do meu quarto havia um revólver entupido de balas, um 38
seguro; com ele eu poderia pintar o diabo, dar um tiro na testa de Socorro ou
no sujeito gordo. Mas eu não sabia quem era ele nem porque havia conversado com
minha mulher. Queria saber a casa de Berenice. Mentira; pensei angustiado,
traído, um corno! O que eu deveria fazer? Por onde iniciar uma investigação? Não
encontrava caminho. Seria melhor interrogar Maria do Socorro, espremê-la até
uma explicação razoável. De súbito ela levantou-se e foi para a cozinha onde
ficou cantarolando e bulindo nas panelas; levantei-me e fui encontrá-la mexendo
mingau para Vilma. Minhas mãos continuavam frias, corpo arrepiando e uma
sensação de tontice rondava minha cabeça. Entrei para meu quarto, olhei para o
revólver no guarda-roupa. O homem gordo insistia em meu pensamento. Manuseei a
arma e tornei a colocá-la no mesmo lugar. Acendi um cigarro e saí em direção à
varanda do fundo.
“É verdade, já estou com uma filha de seis
meses. É franzina, mas saudável e bonitinha”, eu pensava. Como seria o nome do
homem gordo? Olhando por trás parecia um porco baé. Suor frio tomava meu corpo
e a vontade de matar Maria do Socorro voltava. Na verdade eu não teria coragem
de coisa assim. Mais fácil daria um tiro no sujeito. Mas, por que matar? Eu queria
era que Socorro desembuchasse aquela encrenca. O chão parecia distanciar-se de
mim, como se à cama estivesse subindo para o telhado. Minha cabeça parecia
cheia de grilos. Vinham novos arrepios, meu corpo esquentava. Socorro entrou
novamente, assustei me. Calada, debruçou-se sobre o berço da menina e colocou-lhe
a mamadeira na boca. Vilma choramingou. Fiquei olhando, abismado, para as
pernas bem-feitas de Socorro.
O doutor foi diminuindo as doses do
remédio, a sonolência sumiu, minhas mãos não esfriaram mais e os arrepios
desapareceram, assim como a vontade de matar uma pessoa. O homem gordo, para
quem eu tinha um revólver cheio até a boca foi-se apagando aos poucos de minhas
ideias.
Nunca questionei o assunto com
Maria do Socorro, minhas consultas com o médico jamais chegaram ao seu
conhecimento; eu tomava os comprimidos verdes escondido dela. passei quatro
meses engolindo as pílulas e mesmo depois da alta que o doutor me deu,
continuei sentindo reações ocasionais, e com força de vontade consegui
afugentar de mim as alucinações, graças, também à considerável ajuda
psicológica do doutor Ricardo. Depois de tudo isso modifiquei meu comportamento
em casa, relegando certos absurdos de Maria do Socorro, ora, mesmo assim, nossa
vida continuou confusa, mas lhe vou suportando como Deus é servido. O que
ocorreu naquela tarde entre nós dois e o sujeito gordo teria sido somente uma
coincidência.
A mamadeira de Vilma sumiu. Ela
está completando agora três anos e anda falando coisas engraçadas. Socorro já
lhe matriculou numa escolinha.
Será que o homem gordo procurava
mesmo era a casa de Berenice?
(LINHAS INTERCALADAS - 2ª EDIÇÃO)
Ariston
Cardoso
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