Como de
tantas outras vezes no decorrer dos anos, aquele verão tivera dias de fortes
chuvas. Em janeiro, por mais de uma semana, o trabalho da lavoura chegou a
parar. A mata ficou silenciosa sem os roncos dos caititus e a algazarra dos
papagaios e periquitos. Só a chuva pesada e o estrondo dos trovões se faziam
ouvir. Tudo era tristeza. Só não para o Rio Cachoeira que, numa ostentação
vaidosa, contrastava sua pujança e beleza com aquelas terras lamacentas e sem
alegria. Bem alimentado pelas chuvas caídas na cabeceiras, volumoso, poderoso,
passava ameaçador, prometendo morte certa a quem se atrevesse a medir forças
com ele. No silêncio que a tudo cercava,
ele chegava a rugir, fazendo-se escutar a grande distância. A zuadeira de suas
águas parecia o conjunto de mil vozes, vozes misteriosas de um motim invisível,
saídas de suas profundezas. Arrogante, nem parecia mais aquele Rio pedregoso,
pacato, que modestamente deslizava silencioso na época das estiagens. Mas
aqueles sergipanos e sertanejos fortes que calejados que viviam em suas
margens, já o conheciam, respeitavam a força de suas cheias, mas não o temiam,
tanto assim que, num desafio, o enfrentavam corajosamente. Mesmo com toda a
enchente, iam buscar nas suas águas o alimento que a mata úmida e chuvosa lhes
recusava. Com tarrafas e jequis lançados ou colocados em pontos escolhidos, a
alimentação era certa e abundante.
Na sua
roça, o pioneiro José Alves tinha morrido. Não resistira ao ataque da “febre
braba” a “maligna” que descera naquelas matas. Ela era impiedosa. Viera não se sabia
de onde, fizera suas vítimas e fora embora. Aquelas terras desbravadas pelo
velho sergipano e por ele plantadas com ajuda de parentes e assalariados, que
por essas bandas aos poucos chegavam em busca de trabalho, com a sua morte
ficaram sob a responsabilidade do filho José Firmino, que tinha vindo de
Sergipe com os pais, aos quatorze anos de idade, para a aventura do Sul. Agora
já rapaz, caboclo forte, ficara-lhe o encargo de levar pra frente o destino da
fazenda e cuidar do sustento da parentela. Assim, na época de muitas chuvas,
quando o charque escasseava em casa, a mandioca “embebedada” pelas águas
apodrecia sob a terra encharcada e os atoleiros dificultavam o comércio com a
Vila de Cachoeira, Firmino complementava o sustento da casa com a pesca no rio
que cortava a fazenda.
Naquele
inverno, mais de uma vez se convencera o moço fazendeiro da necessidade de uma
junta de bois na fazenda. Só esses animais eram capazes de enfrentar os
atoleiros e arrastar as pesadas cargas que as bestas não conseguiam. Em
Conquista estava um bom comércio para a compra desses animais. Era só esperar o
tempo bom para viajar.
E o tempo
bom veio. Um sol quente enxugou a terra após o período das chuvas. Um céu azul
indicava que o verão tinha chegado e o capinzal de um verde esmeralda brilhava.
Antes de
atingir-se o caminho das boiadas que levava a Conquista, quatro viajantes
entraram num pedaço de mata fechada, início da grande jornada. José Firmino e
seus três acompanhantes, empregados da fazenda, caminharam longo tempo numa semiobscuridade,
onde o silêncio seria completo não fosse o ruído abafado dos passos dos animais
no tapete musgoso do chão, ou o estalar de ramos partidos. A viagem era feita
em silêncio e sob certa apreensão, pois sabiam que atrás de cada árvore podia
estar oculto um índio cioso de seus domínios a acompanhar-lhes os passos.
Vencido o
percurso da mata, tinham ainda pela frente alguns dias de viagem até atingirem
o planalto conquistense. Cobras venenosas eram vistas com frequência,
rastejando no mato. A paisagem foi mudando. A sombra da mata cedera lugar a um
descampado ressequido pelo sol, onde uma vegetação arbustiva aparecia de quando
em quando. Falava-se na presença de onças naquelas paragens onde, segundo
relato dos boiadeiros que por ali guiavam seus rebanhos, já haviam atacado
rezes e até homens. Não era fácil, pois, atingir aquelas terras do Sudoeste. Na
longa caminhada, os únicos pousos eram as toscas rancharias armadas pelos
sertanejos, pois, só mesmo eles cortavam aqueles ermos ao conduzir seus
rebanhos de Conquista para Ilhéus.
A longa
viagem chegou ao fim. Os quatro viajantes durante dias tinham atravessado
descampados, galgando encostas até que o planalto do Sudoeste fosse atingido.
- Ei! Ei
boi veio danado! Ei bicho brabo!
A marcha
era lenta. O gado se deslocava tangido pelo grupo. O pequeno rebanho que
aqueles homens conduziam valia a viagem.
- Que acha
desse gado, Joaquim?
- As
novilhas são bonitas, seu Firmino, e os bois bem fortes. Com aquele capim de
engorda lá dos pastos, vão ficar de dar gosto.
- Gosto
maior é quando aqueles acolá estiverem na canga. Vai acabar a nossa dor de
cabeça no tempo dos atoleiros. Uma junta de bois estava mesmo nos fazendo falta.
- E esse
touro aí, que nome vosmecê vai dar a ele?
- Porque
não o nome de Primeiro, se é o primeiro reprodutor trazido para o capinzal
verde das margens do Cachoeira?
(TERRAS DO SUL)
Helena Borborema
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Helena Borborema - Nasceu em Itabuna. Professora de
Geografia lecionou muitos anos no Colégio Divina Providência, na Ação Fraternal
e no Colégio Estadual de Itabuna. Formada em Pedagogia pela Faculdade de
Filosofia de Itabuna. Exerceu o cargo de Secretária de Educação e Cultura do
Município. (A autora)
“Filha do Dr. Lafayette Borborema, o primeiro advogado de Itabuna. É autora de ‘Terras do Sul’, livro em que documento, memória e imaginação se unem num discurso despretensioso para testemunhar o quadro social e humano daqueles idos de Tabocas. Para a professora universitária Margarida Fahel, ‘Terras do Sul’ são estórias simples, plenas de ‘emoção e humanidade, querendo inscrever no tempo a história de uma gente, o caminho de um rio, a esperança de uma professora que crê no homem e na terra’” (Cyro de Mattos)
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