28 de março de 2020
Péricles Capanema
Bem comum, expressão que aparece a toda hora; trocadilho
perdoado, é bem comum falar em bem comum. Naturalmente, entre outros efeitos,
de sua conceituação correta depende o bom governo. Para mim, portanto, já de
saída, é matéria atual, essencial, embora a veja distante das manchetes. Para
outros, será assunto ultrapassado e desinteressante, pouco importaria ter noção
certa dele. Para fazer bom governo, bastaria ter seriedade administrativa.
Ademais, coisa para lá de debatida; justificadamente longe das manchetes. Não
seria objeto de livro best-seller; quando muito serviria para livro long-seller.
Claro, é questão velha; porém, nunca deixou de ter
atualidade incandescente, própria aos grandes problemas, eles são perenes. Com
efeito, em muitos sentidos o que é verdadeiramente atual deixa ver sempre a
nota do perene — eco do imorredouro no presente. O resto é só o momentâneo, o
passageiro, o fugaz, o efêmero, o fugidio, sei lá o que mais. Realidades
breves, evanescentes, minguando rumo ao nada.
Mesmo o juiz de Direito, embora atento à letra da lei,
precisa ter como fundo de quadro o bem comum. Comanda o artigo 5º da Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro: “Na aplicação da lei, o juiz
atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Na
mesma direção, o artigo 8º do Código de Processo Civil: “Ao aplicar o
ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem
comum”. De outro modo, o juiz nunca deve ofender o bem comum ao aplicar a
lei. Tais disposições ecoam vetusto aforisma do Direito Romano: “salus
populi suprema lex esto”. Que a salvação do povo seja a lei suprema. A
expressão salus populi aqui poderia ser traduzida por bem comum.
Escrevi acima, “de sua conceituação correta”. Então, o que é
o bem comum? Faça um teste, procure quem o defina nos livros e entre
conhecidos. Em 90% dos casos, por baixo, topará com palavras pouco
esclarecedoras, quando não bobagens. Espero que nos restantes 10% tenha melhor
sorte. Tive um professor que dizia sempre: esqueçam o bem comum, ninguém sabe o
que é. E clareza a respeito do bem comum é dos pressupostos mais importantes
para quem pretende ter presença útil na vida pública de um país, não importa em
que grau.
A respeito, sorte tive uma vez, dela não me esqueço. Sempre
me impressionou a exposição feita por João XXIII na “Pacem in Terris”, sobre o
bem comum, em continuação dos ensinamentos a respeito de Leão XIII, Pio XI e
Pio XII.
O núcleo do conceito ali está perfeitamente exposto. O
Pontífice afirma: “o bem comum diz respeito ao homem todo, tanto às
necessidades do corpo, como às do espírito”. O Papa lembra a seguir a definição
já constante na “Mater et Magistra”; bem comum é o “conjunto de todas as
condições da vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral
da personalidade humana”. Pontua aquilo que caracteriza o bem comum, os
seus “moldes”: devem favorecer a obtenção da salvação eterna. E finalmente
desagua na conclusão: “a realização do bem comum constitui a própria
razão de ser dos poderes públicos”.
Trata-se então de ilustrar e enriquecer tais afirmações. Vou
me deter em um ponto: “favorecer o desenvolvimento integral da pessoa
humana”. É expressão bem ampla e polivalente, nada fica fora dela. Cada
situação na vida social que obstaculize o pleno desabrochar das qualidades das
pessoas irá contra o bem comum. Das pessoas e grupos sociais também, bem
entendido, o primeiro dos quais e o mais importante é a família; ampla,
moralizada, englobando muitos ramos, enraizada, influente. Recordo, mais que o
ouro ou o petróleo, tais potencialidades a serem desabrochadas constituem o
maior ativo que têm as famílias, os grupos sociais e os países. Em suas lutas
para subir, facilitar o desenvolvimento das potencialidades é o que mais pode
evitar o decaimento, promovendo amplíssima inclusão.
Esse caminho em direção à plenitude será o verdadeiro avanço
civilizatório de que precisamos, poupando-nos da desgraça vivida hoje, entre
outros, por Cuba e Venezuela, trágicos exemplos de ditaduras que provocam atrofia
social. Enfim, nos livraríamos de retrocessos revolucionários, seríamos
poupados dos atrasos viabilizados pelas vanguardas progressistas.
Aqui estão pontos fundamentais do debate público. Com senso
de proporção, pautados pela justiça, são prioritários o combate à atrofia e o
estímulo à plenitude da vida social, dentro da qual está a econômica. Integram
o bem comum, tornam possível a realização pessoal e a felicidade.
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