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terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

A RUA PAULINO VIEIRA - Helena Borborema


Foto Waldyr Gomes
  
           Para uma criança, no meu tempo era bom demais morar na Paulino Vieira. Antiga rua da Laranjeira, sempre foi uma rua estreita, o que permitia a seus moradores um conhecimento pelo qual todos se davam bem. Situada perto do Rio, tinha a vantagem de proporcionar às famílias que nela residiam, mais facilidade de água para o gasto, numa época em que esta dependia exclusivamente dos aguadeiros que, com seus barris no lombo de um jumento, enchiam os tanques das residências. Isto lá pelas décadas de vinte e de trinta. A proximidade do rio oferecia ainda aos meninos da rua os banhos de folguedo após as aulas da tarde. Tomar banho no rio era uma diversão que não deixava de ser preocupante para os pais, em virtude dos “peraus”, lugares profundos e traiçoeiros que existiam em água aparentemente tranquilas. Um desses “peraus” ficava num trecho chamado Pau de Alho, e o outro mais adiante, na Pedra do Gelo, em frente à fábrica desse produto. Esse trecho perigoso do Rio Cachoeira ficava em frente da atual avenida Fernando Cordier. Situada perto da fábrica de gelo, a Paulino Vieira dava aos seus moradores mais facilidade de adquirir esse produto, vendido sob a forma de grandes barras, e que era muito importante numa época em que não existia ainda nas casas a geladeira. Essa fábrica, situada na beira do rio, mais ou menos no local onde se ergue hoje o edifício Santa Paula, era propriedade do senhor Pedro Borges, um sergipano radicado em Itabuna, fazendeiro e homem de iniciativa. Por essa época, ainda na década de trinta, sorvete em Itabuna era artigo de luxo, pouquíssimas família se davam ao requinte de prepará-lo em casa, em pequenas máquinas manuais.  Por isso, não foi pequena a animação da criançada, e até de adultos, quando seu Homero (Merinho) apareceu pelas ruas da cidade empurrando o primeiro carrinho de sorvete, vendido em pequenas tabocas e fabricado por ele em sua máquina ambulante.


            Os meninos da Paulino Vieira tinham para brincar a beira do rio, onde, num gramado ralo, jogavam bola, organizados em times. O perigo dessas jogadas era a passagem das boiadas com algum boi brabo. Vindo pela beira do Rio, que era passagem obrigatória, a boiada era tangida em direção da Taboquinhas (Rua Barão do Rio Branco), e daí para o matadouro que ficava num terreno alto, no lugar onde se encontra hoje o IMEAM (Instituto Municipal de Educação Aziz Maron). Mas para a molecada a passagem da boiada não deixava de ser um divertimento, quando todos corriam espavoridos buscando abrigo por todos os lados. Uma outra atração para as crianças da Paulino Vieira era a chegada da tropa de cacau do Coronel Oscar Marinho, que morava e tinha um grande armazém na rua. A chegada dos animais era anunciada pelo tilintar do sino da besta-madrinha, que num passo cadenciado, toda enfeitada de fitas coloridas pendentes da cabeça e com um bonito peitoral cheio de enfeites prateados e guizos, vinha na frente guiando a tropa carregada de sacos de cacau. E eram muitos animais. Os tropeiros, de calça arregaçada até o meio da canela, alguns com um lenço amarrado na cabeça, chicote na mão, tangendo e gritando, davam mais vivacidade ao conjunto. Não havia menino ou menina na rua que não corresse para ver a chegada da tropa do coronel.

            Pela Paulino Vieira, aos sábados, havia muito movimento. Às vezes a dona de casa fazia a feira da semana sem precisar sair de casa.  Os vendedores vinham de suas roças e plantações, de passagem para a feira que ficava no centro da cidade, na praça Adami, e apresentavam nas portas os seus produtos, desde frutas e verduras, até feijão verde, pimenta, tapioca, a compridos paus de galinhas, cesta de ovos, perus. Diariamente passavam pescadores com grandes “rodas” de peixes tirados, quase na hora rio.  Bonitos robalos e carapebas, cordas de pitus, tudo tirado do dadivoso Cachoeira, em cujas água abundavam cardumes de corrós, bagres,  corcundas, acaris que fartavam tanto a mesa dos ricos quanto a dos pobres.  A pesca era feita de tarrafa em toda a extensão do rio, e de jereré nas partes rasas junto das margens.  Na rua, numa boa casa, morava o pescador seu João Luiz, que diariamente vendia o produto de suas pescarias aos moradores que quisessem comprá-lo. Peixes e galinhas não eram vendidos a quilo, mas a “olho”, depois de muito regateio. O comprador de galinha fazia suas exigências antes de fechar negócio. Soprava debaixo das asas da ave para ver se a mesma sofria de uma doença - a “mofina” -, apalpava o peito para ver se era carnudo e se a galinha estava gorda ou magra. Depois desses exames, discutia-se o preço. Era frequente a venda de caças como tatus, pacas, sariguês, teiús e passarinhos, crus ou moqueados, abatidos nas matas próximas. Na época do São João, milho verde e laranjas eram comprados na porta, sem necessidade de se procurar a feira, pois os vendedores que vinham das roças com seus burros carregados tinham, nas residências, que eram muitas, compradores certos.

            Todas as tardes, durante a semana, a meninada da Paulino Vieira, lá pelas 16:00h, ficava a postos esperando o“homem das massas”, que vinha da padaria com um grande baú de folha-de-flandres na cabeça, repleto de pães, doces e biscoitos, os mais variados. Cacetinhos, roscas lustrosas, sonhos, broas de milho, queijadas, bolachas e bolinhos diversos eram escolhidos a dedo, conforme a preferência. Havia ainda o bolachão “mata-fome”.

            Para o café da manhã, muitas famílias que não tinham quem comprasse o pão, colocavam, como já era de costume, um saco próprio para isso, pendurado num prego na porta da rua. Bem cedo, o padeiro colocava nos sacos os pães bem quentinhos, recém-saídos do forno e na quantidade previamente acertada. Ali eles ficavam até que alguém da casa fosse apanhá-los. Não havia falha na entrega, nem moleque faminto para roubá-los. Ainda pela manhã passava o leiteiro, montado num burrico com dois grandes vasilhames de leite, distribuindo os litros com a freguesia. Também passavam mercando, com seus tabuleiros na cabeça, os vendedores de carne de porco e de carneiro. Outro vendedor que frequentava a Paulino Vieira era seu Alexandre, que mercava os saborosos beijus de Água Branca. Negro, tinha uma mão aleijada, e passava todas as tardes puxando um burrinho carregando dois cestos de beijus, muito bem feitos, enrolados em folha de bananeira. A singularidade de Alexandre era que ele, para alertar a freguesia da sua passagem, ladrava tal e qual um cachorro.

            Na rua, havia residências simples e casas boas. Nas décadas de vinte e de trinta, nela residiam dois coronéis do cacau, Oscar Marinho Falcão - numa bonita casa cheia de janelas com um portão de ferro e pequeno jardim ao lado - e o austero Manuel Brandão (Neca), que usava roupa escura com um colete, relógio de ouro com corrente na algibeira e chapéu de feltro. Quatro famílias libanesas moravam também na rua nessa mesma época: os Barifaldi Hirs, os Habib, os Midlej, e o casal Alfredo Agle. Outros moradores desse período foram os senhores Francisco Ribeiro  - ourives muito conhecido e conceituado na cidade -, Arthur Pitta , o alfaiate Narciso Rocha, o coronel Laudelino Lorens, o dono da farmácia senhor Benigno Azevedo,  o advogado Lafayette de Borborema. Outros moradores ficaram temporariamente. No início da rua, esquina com a praça Olinto Leone , ficava a ampla residência do senhor Carlos Maron, mais tarde transformada em sede do Itabuna Clube.  Esta casa foi depois demolida e em seu terreno erguido o prédio do Banco do Brasil.

            Além das casas residenciais, funcionavam na Paulino Vieira a alfaiataria do senhor Narciso Rocha, a pensão familiar de seu Pitta, a quitanda de dona Sinforosa, senhora gorda, de cabeleira branca, todos os dias sentada à porta esperando pela freguesia que procurava o seu carvão, enquanto o filho Zé Capenga (era chamado assim mesmo) atendia na parte da quitanda vendendo talhadas de jaca, bananas, verduras, frutas e tempero verde. Numa das esquinas ficava a selaria Flor do Brasil, de seu Zé Gomes, homônimo de outro Zé Gomes, que tinha uma sapataria mas adiante.

            Como nas residências de toda a cidade os fogões eram alimentandos a lenha ou a carvão, diariamente podiam ser vistas as figura dos carvoeiros com seus burros carregados de sacos deste produto, e o vendedor de lenha com os feixes de achas amarrados de cipó, também no lombo de burros, oferecendo pelas casas.

            A Paulino Vieira era uma rua gostosa de se morar pelas distrações que oferecia. No carnaval, era passagem dos blocos e mascarados, a começar pelo Zé Pereira , que acordava os moradores com o seu zabumba, já anunciando a folia. Até cortejo de casamento fazia a alegria da rua. Uma ou outra noiva que residia na rua da Jaqueira (final da avenida Fernando Cordier até o começo da Mangabinha), pela falta de transporte na cidade, passava vestida de noiva, com véu e ramalhete de flores na mão, acompanhada de seu cortejo de padrinhos e convidados, todos a pé, até a Igreja Matriz de São José, na praça Olinto Leone, ou à Capelinha de Santo Antônio. Era uma festa para os olhos de qualquer criança.

            Quando a noite chegava, a meninada da rua se juntava para as brincadeiras. As meninas faziam rodas de ciranda, cabra-cega, boca-de-forno, pulavam corda, tudo no meio da rua - sem o menor perigo, pois os poucos carros da cidade quase nunca circulavam à noite -, enquanto algumas famílias, cada qual sentada à sua porta usufruindo da fresca da noite, acompanhavam atentos o corre-corre dos filhos. Para os adultos, aquele bate-papo tranquilo, sentados ali no passeio, era o modo de encher a noite e deixar o tempo passar, numa época em que não havia ainda a televisão ou outro entretenimento, a não ser o cinema para aquele que gostavam de frequentá-lo. Todos se sentiam seguros. Logo ao anoitecer, um grupo de homens fardados de cáqui, de quepe e cassetete na mão, aparecia na rua marchando sob as ordens de um comandante, seu Moraes. Era a Guarda Noturna. Numa encruzilhada das ruas, eles paravam sob as ordens de um apito e, a uma determinação do chefe, se encaminhava cada um para a rua que lhe fora designada. Cada família conhecia o guarda da sua rua, sabia o seu nome, confiava nele. Ninguém tinha medo de sair, de ficar sentado à porta até mais tarde, de esquecer uma janela aberta ou uma cadeira no passeio. O guarda estava ali para proteger e dar segurança. Não havia assaltos. A violência só ocorria por altos interesses políticos ou econômicos.

            Com frequência, o silêncio da rua Paulino Vieira à noite era quebrado pela voz plangente de um seresteiro, o Chico Malandro, rapaz simples da Mangabinha, que  conforme o apelidaram, passava o dia sem trabalhar, saindo só à noite para dedilhar o seu violão e cantar as mágoas de amor.

            Situada entre a beira do Rio e a rua 7 de setembro, antiga Buri, a Paulino Vieira recebia desta muita influência nos dias de festa. Pelo Natal, a Sete de Setembro e a J.J. Seabra (antiga Rua da Lama) ficavam mais iluminadas. Mesas de jogos, desde a roleta ao jaburu e aos dados, eram instaladas na Sete de Setembro, em plena rua, fazendo a animação das festas natalinas. Nesses jogos, ouvia-se a voz dos responsáveis pela roleta ou dados chamando os passantes para que fossem tentar a sorte, lançando os dados sobre mesas forradas de oleado preto ou vermelho com grandes números pintados de branco. Adultos e crianças aí se juntavam para jogar,  sem o menor problema. Tudo era festa.

            Na rua Sete de Setembro (Buri), ainda na semana do Natal, vendedores expunham melancias, abacaxis, e mangas, que eram as frutas da época, em verdadeiros montes que se erguiam do chão desafiando a gula de quem quisesse se fartar. Na Praça Adami, eram armadas as quermesses cheias de brinquedos e prendas variadas, organizadas por senhoras da sociedade com fins beneficentes.

            Além das frutas expostas no meio da rua e vendidas na maior fartura, a mercearia “O Vesúvio”, na mesma rua, chamava a atenção. Esta mercearia pertencia ao senhor Gaspar Fiilizzola, um italiano gordo, corado, atencioso e alegre, e nela era encontrada uma variedade grande de produtos. Sacos de avelãs, amêndoas, castanhas portuguesas, nozes, ficavam expostos aos passantes. Pendurados sobre o balcão, grandes presuntos e ótimos salames vindos do Sul do País apetitosos cachos de uva moscatel, cachos de passas vindos da Argentina enchiam os olhos. Sobre o balcão, queijos variados, caixas de frutas como maçãs, peras, e ameixas frescas, faziam as delícias das pessoas de maior poder aquisitivo. Havia muita fartura, especialmente pelas festas natalinas.

            Com a morte de seu Gaspar, o "Vesúvio" foi fechado, ficando só as padarias uma a dos irmãos Celestino, e a outra do senhor Senna. Mais tarde, na mesma rua Sete de Setembro, foi inaugurado o “O Pão de Leite”, de Zeca Franco, com massas finas, pães e bolos.

            Uma casa de tecidos aumentou o movimento da rua Sete de setembro: foi a ”Loja do Povo”, do sergipano Francino Nunes, recém-chegado a Itabuna. Esta loja, situada num terreno junto ao qual foi levantado, anos depois, um prédio da família Messias, marcava o fim da Rua Sete de Setembro, ex-Buri. Daí para frente era um terreno vazio, encharcado nos tempos de chuva, abrangendo o local onde é hoje o Jardim do O. Poucas casinhas se erguiam ali, e em duas delas residiam as então conhecidas rezadeiras dona Maria e dona Bertolina, muito procuradas para tirar “olhado” de menino doente ou que não queria comer. Para além desse terreno descampado, já na entrada da Avenida Garcia, ficava a rancharia dos sertanejos que traziam carneiros para vender, além de enormes requeijões. Depois da rancharia, lá pelas imediações do atual bairro Zildolândia, ficava o campo de futebol.

            Muitas modificações sofreram o Buri e a Rua da Lama com o alargamento, novo calçamento, novas construções, etc. A primeira recebeu o nome de Rua Sete de Setembro, a segunda, J.J. Seabra. Ambas foram mais tarde unificadas, na administração do prefeito José de Almeida Alcântara, com o nome de Avenida do Cinquentenário, em homenagem aos cinquenta anos de Itabuna como cidade. Muitos anos antes, porém, a Laranjeira já havia também mudado de nome, passando a ser Rua Coronel Paulino Vieira, nome de uma das mais dignas figuras do passado de Itabuna. Com o tempo, a Paulino Vieira foi sendo modificada. Seus moradores aos poucos foram saindo, e um comércio ativo ali surgiu. Quase todas as casas foram modificadas. Onde havia janelas, surgiram vitrinas. Das casas dos coronéis, uma foi demolida, e a outra, modificada. A rua perdeu a alegria pueril do passado, mas conservou a sua vitalidade sob outros aspectos, como nos mostra hoje o seu comércio atuante.

            Rua Paulino Vieira, onde nasci e passei toda a minha infância, ex-rua da Laranjeira, é por isso mesmo aquela que deixou marcas indeléveis na minha lembrança. Foi a rua das minhas brincadeiras, do pular corda, das cirandas, do chicotinho queimado e da boca de forno. A rua do São João alegrado pelas fogueiras, balões e fogos de artifício. A rua que me proporcionava acompanhar a vida do Cachoeira nos seus altos e baixos. Rua das serestas do Chico Malandro, do desfilar das tropas de cacau para o armazém do coronel, quando despertava a curiosidade da meninada com o tilintar dos guizos e chocalhos da besta-madrinha.

            Rua das boas lembranças de uma infância feliz.


(RETALHOS)
Helena Borborema

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