Para uma
criança, no meu tempo era bom demais morar na Paulino Vieira. Antiga rua
da Laranjeira, sempre foi uma rua estreita, o que permitia a seus moradores um
conhecimento pelo qual todos se davam bem. Situada perto do Rio, tinha a
vantagem de proporcionar às famílias que nela residiam, mais facilidade de água
para o gasto, numa época em que esta dependia exclusivamente dos aguadeiros
que, com seus barris no lombo de um jumento, enchiam os tanques das
residências. Isto lá pelas décadas de vinte e de trinta. A proximidade do rio
oferecia ainda aos meninos da rua os banhos de folguedo após as aulas da tarde.
Tomar banho no rio era uma diversão que não deixava de ser preocupante para os
pais, em virtude dos “peraus”, lugares profundos e traiçoeiros que existiam em
água aparentemente tranquilas. Um desses “peraus” ficava num trecho chamado Pau
de Alho, e o outro mais adiante, na Pedra do Gelo, em frente à fábrica desse
produto. Esse trecho perigoso do Rio Cachoeira ficava em frente da atual
avenida Fernando Cordier. Situada perto da fábrica de gelo, a Paulino Vieira
dava aos seus moradores mais facilidade de adquirir esse produto, vendido sob a
forma de grandes barras, e que era muito importante numa época em que não
existia ainda nas casas a geladeira. Essa fábrica, situada na beira do rio,
mais ou menos no local onde se ergue hoje o edifício Santa Paula, era
propriedade do senhor Pedro Borges, um sergipano radicado em Itabuna,
fazendeiro e homem de iniciativa. Por essa época, ainda na década de trinta,
sorvete em Itabuna era artigo de luxo, pouquíssimas família se davam ao
requinte de prepará-lo em casa, em pequenas máquinas manuais. Por isso, não foi pequena a animação da
criançada, e até de adultos, quando seu Homero (Merinho) apareceu pelas ruas da
cidade empurrando o primeiro carrinho de sorvete, vendido em pequenas tabocas e
fabricado por ele em sua máquina ambulante.
Os meninos
da Paulino Vieira tinham para brincar a beira do rio, onde, num gramado ralo,
jogavam bola, organizados em times. O perigo dessas jogadas era a passagem das
boiadas com algum boi brabo. Vindo pela beira do Rio, que era passagem
obrigatória, a boiada era tangida em direção da Taboquinhas (Rua Barão do Rio
Branco), e daí para o matadouro que ficava num terreno alto, no lugar onde se
encontra hoje o IMEAM (Instituto Municipal de Educação Aziz Maron). Mas para a
molecada a passagem da boiada não deixava de ser um divertimento, quando todos corriam
espavoridos buscando abrigo por todos os lados. Uma outra atração para as crianças
da Paulino Vieira era a chegada da tropa de cacau do Coronel Oscar Marinho, que
morava e tinha um grande armazém na rua. A chegada dos animais era anunciada
pelo tilintar do sino da besta-madrinha, que num passo cadenciado, toda
enfeitada de fitas coloridas pendentes da cabeça e com um bonito peitoral cheio
de enfeites prateados e guizos, vinha na frente guiando a tropa carregada de
sacos de cacau. E eram muitos animais. Os tropeiros, de calça arregaçada até o
meio da canela, alguns com um lenço amarrado na cabeça, chicote na mão,
tangendo e gritando, davam mais vivacidade ao conjunto. Não havia menino ou
menina na rua que não corresse para ver a chegada da tropa do coronel.
Pela Paulino
Vieira, aos sábados, havia muito movimento. Às vezes a dona de casa fazia a
feira da semana sem precisar sair de casa.
Os vendedores vinham de suas roças e plantações, de passagem para a
feira que ficava no centro da cidade, na praça Adami, e apresentavam nas portas
os seus produtos, desde frutas e verduras, até feijão verde, pimenta, tapioca, a
compridos paus de galinhas, cesta de ovos, perus. Diariamente passavam
pescadores com grandes “rodas” de peixes tirados, quase na hora rio. Bonitos robalos e carapebas, cordas de pitus,
tudo tirado do dadivoso Cachoeira, em cujas água abundavam cardumes de corrós,
bagres, corcundas, acaris que fartavam
tanto a mesa dos ricos quanto a dos pobres.
A pesca era feita de tarrafa em toda a extensão do rio, e de jereré nas
partes rasas junto das margens. Na rua,
numa boa casa, morava o pescador seu João Luiz, que diariamente vendia o
produto de suas pescarias aos moradores que quisessem comprá-lo. Peixes e
galinhas não eram vendidos a quilo, mas a “olho”, depois de muito regateio. O
comprador de galinha fazia suas exigências antes de fechar negócio. Soprava
debaixo das asas da ave para ver se a mesma sofria de uma doença - a “mofina”
-, apalpava o peito para ver se era carnudo e se a galinha estava gorda ou
magra. Depois desses exames, discutia-se o preço. Era frequente a venda de caças
como tatus, pacas, sariguês, teiús e passarinhos, crus ou moqueados, abatidos
nas matas próximas. Na época do São João, milho verde e laranjas eram comprados
na porta, sem necessidade de se procurar a feira, pois os vendedores que vinham
das roças com seus burros carregados tinham, nas residências, que eram muitas,
compradores certos.
Todas as
tardes, durante a semana, a meninada da Paulino Vieira, lá pelas 16:00h, ficava
a postos esperando o“homem das massas”, que vinha da padaria com um grande baú
de folha-de-flandres na cabeça, repleto de pães, doces e biscoitos, os mais
variados. Cacetinhos, roscas lustrosas, sonhos, broas de milho, queijadas,
bolachas e bolinhos diversos eram escolhidos a dedo, conforme a preferência. Havia
ainda o bolachão “mata-fome”.
Para o
café da manhã, muitas famílias que não tinham quem comprasse o pão, colocavam,
como já era de costume, um saco próprio para isso, pendurado num prego na porta
da rua. Bem cedo, o padeiro colocava nos sacos os pães bem quentinhos, recém-saídos do forno e na quantidade previamente acertada. Ali eles ficavam
até que alguém da casa fosse apanhá-los. Não havia falha na entrega, nem
moleque faminto para roubá-los. Ainda pela manhã passava o leiteiro, montado
num burrico com dois grandes vasilhames de leite, distribuindo os litros com a
freguesia. Também passavam mercando, com seus tabuleiros na cabeça, os
vendedores de carne de porco e de carneiro. Outro vendedor que frequentava a
Paulino Vieira era seu Alexandre, que mercava os saborosos beijus de Água
Branca. Negro, tinha uma mão aleijada, e passava todas as tardes puxando um
burrinho carregando dois cestos de beijus, muito bem feitos, enrolados em folha
de bananeira. A singularidade de Alexandre era que ele, para alertar a
freguesia da sua passagem, ladrava tal e qual um cachorro.
Na rua,
havia residências simples e casas boas. Nas décadas de vinte e de trinta, nela
residiam dois coronéis do cacau, Oscar Marinho Falcão - numa bonita casa cheia
de janelas com um portão de ferro e pequeno jardim ao lado - e o austero Manuel Brandão (Neca), que usava roupa escura com um colete, relógio de ouro com corrente
na algibeira e chapéu de feltro. Quatro famílias libanesas moravam também na
rua nessa mesma época: os Barifaldi Hirs, os Habib, os Midlej, e o casal
Alfredo Agle. Outros moradores desse período foram os senhores Francisco
Ribeiro - ourives muito conhecido e
conceituado na cidade -, Arthur Pitta , o alfaiate Narciso Rocha, o coronel Laudelino
Lorens, o dono da farmácia senhor Benigno Azevedo, o advogado Lafayette de Borborema. Outros
moradores ficaram temporariamente. No início da rua, esquina com a praça Olinto
Leone , ficava a ampla residência do senhor Carlos Maron, mais tarde
transformada em sede do Itabuna Clube. Esta
casa foi depois demolida e em seu terreno erguido o prédio do Banco do Brasil.
Além das
casas residenciais, funcionavam na Paulino Vieira a alfaiataria do senhor
Narciso Rocha, a pensão familiar de seu Pitta, a quitanda de dona Sinforosa, senhora gorda, de cabeleira branca, todos os dias sentada à porta esperando
pela freguesia que procurava o seu carvão, enquanto o filho Zé Capenga (era
chamado assim mesmo) atendia na parte da quitanda vendendo talhadas de jaca,
bananas, verduras, frutas e tempero verde. Numa das esquinas ficava a selaria Flor
do Brasil, de seu Zé Gomes, homônimo de outro Zé Gomes, que tinha uma sapataria
mas adiante.
Como nas
residências de toda a cidade os fogões eram alimentandos a lenha ou a carvão,
diariamente podiam ser vistas as figura dos carvoeiros com seus burros
carregados de sacos deste produto, e o vendedor de lenha com os feixes de achas
amarrados de cipó, também no lombo de burros, oferecendo pelas casas.
A Paulino Vieira era uma rua gostosa de
se morar pelas distrações que oferecia. No carnaval, era passagem dos blocos e
mascarados, a começar pelo Zé Pereira , que acordava os moradores com o seu zabumba, já anunciando a folia. Até cortejo de casamento fazia a alegria da rua. Uma ou
outra noiva que residia na rua da Jaqueira (final da avenida Fernando Cordier
até o começo da Mangabinha), pela falta de transporte na cidade, passava
vestida de noiva, com véu e ramalhete de flores na mão, acompanhada de seu
cortejo de padrinhos e convidados, todos a pé, até a Igreja Matriz de São José, na praça Olinto Leone, ou à Capelinha de Santo Antônio. Era uma festa para os
olhos de qualquer criança.
Quando a
noite chegava, a meninada da rua se juntava para as brincadeiras. As meninas
faziam rodas de ciranda, cabra-cega, boca-de-forno, pulavam corda, tudo no meio
da rua - sem o menor perigo, pois os poucos carros da cidade quase nunca
circulavam à noite -, enquanto algumas famílias, cada qual sentada à sua porta
usufruindo da fresca da noite, acompanhavam atentos o corre-corre dos filhos. Para
os adultos, aquele bate-papo tranquilo, sentados ali no passeio, era o modo de
encher a noite e deixar o tempo passar, numa época em que não havia ainda a
televisão ou outro entretenimento, a não ser o cinema para aquele que gostavam
de frequentá-lo. Todos se sentiam seguros. Logo ao anoitecer, um grupo de
homens fardados de cáqui, de quepe e cassetete na mão, aparecia na rua
marchando sob as ordens de um comandante, seu Moraes. Era a Guarda Noturna. Numa
encruzilhada das ruas, eles paravam sob as ordens de um apito e, a uma
determinação do chefe, se encaminhava cada um para a rua que lhe fora designada. Cada família conhecia o guarda da sua rua, sabia o seu nome,
confiava nele. Ninguém tinha medo de sair, de ficar sentado à porta até mais
tarde, de esquecer uma janela aberta ou uma cadeira no passeio. O guarda estava
ali para proteger e dar segurança. Não havia assaltos. A violência só ocorria
por altos interesses políticos ou econômicos.
Com
frequência, o silêncio da rua Paulino Vieira à noite era quebrado pela voz
plangente de um seresteiro, o Chico Malandro, rapaz simples da Mangabinha, que conforme o apelidaram, passava o dia sem
trabalhar, saindo só à noite para dedilhar o seu violão e cantar as mágoas de
amor.
Situada
entre a beira do Rio e a rua 7 de setembro, antiga Buri, a Paulino Vieira
recebia desta muita influência nos dias de festa. Pelo Natal, a Sete de Setembro e a J.J. Seabra (antiga Rua da Lama) ficavam mais iluminadas. Mesas de jogos, desde a
roleta ao jaburu e aos dados, eram instaladas na Sete de Setembro, em plena
rua, fazendo a animação das festas natalinas. Nesses jogos, ouvia-se a voz dos
responsáveis pela roleta ou dados chamando os passantes para que fossem tentar
a sorte, lançando os dados sobre mesas forradas de oleado preto ou vermelho com
grandes números pintados de branco. Adultos e crianças aí se juntavam para
jogar, sem o menor problema. Tudo era festa.
Na rua Sete de Setembro
(Buri), ainda na semana do Natal,
vendedores expunham melancias, abacaxis, e mangas, que eram as frutas da
época, em verdadeiros montes que se erguiam do chão desafiando a gula de quem
quisesse se fartar. Na Praça Adami, eram armadas as quermesses cheias de
brinquedos e prendas variadas, organizadas por senhoras da sociedade com fins
beneficentes.
Além das
frutas expostas no meio da rua e vendidas na maior fartura, a mercearia “O
Vesúvio”, na mesma rua, chamava a atenção. Esta mercearia pertencia ao senhor
Gaspar Fiilizzola, um italiano gordo, corado, atencioso e alegre, e nela era
encontrada uma variedade grande de produtos. Sacos de avelãs, amêndoas,
castanhas portuguesas, nozes, ficavam expostos aos passantes. Pendurados sobre o
balcão, grandes presuntos e ótimos salames vindos do Sul do País apetitosos cachos de uva moscatel, cachos de passas vindos da Argentina
enchiam os olhos. Sobre o balcão, queijos variados, caixas de frutas como
maçãs, peras, e ameixas frescas, faziam as delícias das pessoas de maior
poder aquisitivo. Havia muita fartura, especialmente pelas festas natalinas.
Com a
morte de seu Gaspar, o "Vesúvio" foi fechado, ficando só as padarias uma a dos irmãos Celestino, e a outra do senhor Senna. Mais tarde, na mesma rua Sete de Setembro,
foi inaugurado o “O Pão de Leite”, de Zeca Franco, com massas finas, pães e
bolos.
Uma casa
de tecidos aumentou o movimento da rua Sete de setembro: foi a ”Loja do Povo”,
do sergipano Francino Nunes, recém-chegado a Itabuna. Esta loja, situada num
terreno junto ao qual foi levantado, anos depois, um prédio da família Messias,
marcava o fim da Rua Sete de Setembro, ex-Buri. Daí para frente era um terreno
vazio, encharcado nos tempos de chuva, abrangendo o local onde é hoje o Jardim
do O. Poucas casinhas se erguiam ali, e em duas delas residiam as então
conhecidas rezadeiras dona Maria e dona Bertolina, muito procuradas para tirar
“olhado” de menino doente ou que não queria comer. Para além desse terreno
descampado, já na entrada da Avenida Garcia, ficava a rancharia dos sertanejos
que traziam carneiros para vender, além de enormes requeijões. Depois da
rancharia, lá pelas imediações do atual bairro Zildolândia, ficava o campo de
futebol.
Muitas
modificações sofreram o Buri e a Rua da Lama com o alargamento, novo calçamento,
novas construções, etc. A primeira recebeu o nome de Rua Sete de Setembro, a
segunda, J.J. Seabra. Ambas foram mais tarde unificadas, na administração do
prefeito José de Almeida Alcântara, com o nome de Avenida do Cinquentenário, em
homenagem aos cinquenta anos de Itabuna como cidade. Muitos anos antes, porém,
a Laranjeira já havia também mudado de nome, passando a ser Rua Coronel Paulino
Vieira, nome de uma das mais dignas figuras do passado de Itabuna. Com o tempo,
a Paulino Vieira foi sendo modificada. Seus moradores aos poucos foram saindo,
e um comércio ativo ali surgiu. Quase todas as casas foram modificadas. Onde
havia janelas, surgiram vitrinas. Das casas dos coronéis, uma foi demolida, e a
outra, modificada. A rua perdeu a alegria pueril do passado, mas conservou a
sua vitalidade sob outros aspectos, como nos mostra hoje o seu comércio
atuante.
Rua
Paulino Vieira, onde nasci e passei toda a minha infância, ex-rua da
Laranjeira, é por isso mesmo aquela que deixou marcas indeléveis na minha lembrança.
Foi a rua das minhas brincadeiras, do pular corda, das cirandas, do chicotinho
queimado e da boca de forno. A rua do São João alegrado pelas fogueiras, balões
e fogos de artifício. A rua que me proporcionava acompanhar a vida do Cachoeira
nos seus altos e baixos. Rua das serestas do Chico Malandro, do desfilar das
tropas de cacau para o armazém do coronel, quando despertava a curiosidade da
meninada com o tilintar dos guizos e chocalhos da besta-madrinha.
Rua das
boas lembranças de uma infância feliz.
(RETALHOS)
Helena Borborema
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