Publicado em 17 de janeiro de 2020
Péricles Capanema
Quase 60 anos atrás, 1961, Nelson Rodrigues escreveu: “Hoje
em dia, chamar um brasileiro de reacionário, é pior do que xingar a mãe. Não há
mais direita, nem centro — só há esquerda neste país. Perguntem ao professor
Eugênio Gudin: — ‘Você é reacionário?’. Sua resposta será um tiro. Insisto: — o
brasileiro só é direitista entre quatro paredes e de luz apagada. Ao contrário
de setenta milhões de patrícios, eu me sinto capaz de trepar numa mesa e
anunciar gloriosamente: — Sou o único reacionário do Brasil. E, com efeito,
agrada-me ser xingado de reacionário. Por toda parte, olham-me, apalpam-me,
farejam-me como uma exceção vergonhosa.”
Comenta ainda o dramaturgo, considerado o maior do
Brasil: “Eu, com todo o meu reacionarismo, confesso e brutal, sou o único
autor de teatro, o único que, até hoje, não mereceu jamais um mísero
prêmio. Pois bem. O Dias Gomes, com o seu ‘Pagador de promessas’, fez um rapa
de prêmios. O Flávio Rangel não dá um espirro sem que lhe caia um prêmio na
cabeça. O meu amigo Augusto Boal, premiado. O Vianinha, premiadíssimo”. Dias
Gomes e Vianinha foram do PCB, os dois outros são também autores de esquerda.
Em 2020, o brasileiro só se confessa direitista entre quatro
paredes e de luz apagada? “Só há esquerda nesse país” continua
válido? Vamos distinguir. Ponto capital: o Brasil de 1961, em boa parte,
mantinha nível de moralidade privada e de moralidade pública que já não temos;
melhor, moralidade e respeitabilidade, eram em larga medida penhor de futuro
brilhante. Nesse sentido, sob o ponto de vista do que hoje se intitula
revolução cultural, despencamos para a esquerda. Ficamos diferentes para pior,
apareceram mais nítidas e mais pesadas nuvens negras no horizonte do futuro.
Faltam os prêmios. Continuam a jorrar só para a autores de
esquerda? Por que naqueles anos de generalizada inibição e temor direitistas —
de hegemonia cultural esquerdista na posse dos microfones —, ninguém premiava
Nelson Rodrigues? Simples, os instrumentos pelos quais se exprimia na época a
opinião que se publica (diferente da opinião pública) estavam a bem dizer todos
na mão da esquerda, comitês, comissões, diretorias de associações, tanta coisa
mais. E ela só premiava e premia gente da patota. E assim, na promoção de
numerosos corifeus da esquerda por meio de ambientes eruditos e posições de
destaque (as patotas prestigiam patotas), não mudou nada ou quase nada. Temos
ainda atuante uma carapaça revolucionária, já bastante encarquilhada,
asfixiando um miolo vivo em que existe muita coisa boa. Em resumo, o brasileiro
comum em boa medida permanece refratário à pregação esquerdista.
Não nos iludamos, este mundo de letrados esquerdistas,
insulado do público em redoma tóxica, representa realidade artificial, postiça,
mas sedimentada. Infelizmente ainda hoje sua orientação predomina nas
sacristias, na academia, nas redações, em muitos clubes grã-finos. E isso
projeta visão deformada do que seja o Brasil.
Alguém, por exemplo, já ouviu falar que a CNBB, CIMI ou CPT
tenham promovido para os galarins sacerdote conservador, mesmo que seja por
distração? Não existe. Nos últimos anos algum autor de direita foi distinguido
com prêmio literário de valor? Nas redações despontam jornalistas com traços
direitistas e conservadores, é fato. Por quê? Motivo pouco enfatizado, para as
direções das empresas é conveniente tê-los como colaboradores, pois atraem para
suas publicações e programas leitores e ouvintes conservadores. O descolamento
entre o público comum e docentes, fortíssimo na academia, aqui é bem menor.
Em um aspecto, o Brasil de nossos dias é muito diferente do
Brasil de 1961, em que a patrulha ideológica marcava forte. Nas redes, com
audiência, há sites direitistas e conservadores dos mais variados matizes e
orientações. De alto a baixo da opinião brasileira, em especial na parte
anônima, que não se publica, que tem poucos microfones à disposição, cresce um
movimento de reação. Quem diz reação, diz gente que reage, reacionários.
Repito, mudou o Brasil, o reacionário e o conservador se manifestam com
decibéis cada vez maiores. Em numerosos setores, abrigando-se em numerosas
correntes, existem conservadores e reacionários atuantes.
Falei acima de matizes e orientações diferentes. Com efeito,
as discrepâncias tantas vezes eriçadas provocam choques, às vezes
desagregadores e destrutivos. E aqui começo o mais importante de minhas considerações.
Liberais na economia, contrários à estatização, são tantas vezes libertários em
costumes. Temos conservadores nos costumes, mas com pendores estatizantes.
Vou tentar clarear parte da situação, o demônio pesca em
águas turvas. Para isso olho quintal vizinho, a França. Por razões de tempo e
espaço, trato do tema por cima. Lembro divisão conhecida da direita francesa
(com muitas adaptações seu conhecimento ilumina a cena brasileira):
legitimista, bonapartista, orleanista.
Entrada de Carlos X em Paris
A legitimista — um dia quis Luís XVIII, mais ainda, sonhou
com Carlos X [foto], recusou Napoleão no trono — via de regra é
tradicionalista, monárquica, católica. Valoriza elites enraizadas na História,
não é estatizante, seu foco é a defesa da família, espera relativamente pouco
da ação do Estado, dá mais importância ao costume que à lei. A mais, luta pelos
direitos das sociedades intermediárias (princípio de subsidiariedade). Líderes
com certa nota patriarcal; melhor, paternal.
A bonapartista recusa o Ancien Régime, em geral
subestima quando não despreza as elites com raízes históricas, cria uma nova
elite com base na burocracia estatal, em especial no elemento armado, coloca à
frente de suas reivindicações não a família saudável e as sociedades
intermediárias, mas a pátria (de outro modo, subestima quando não nega o
princípio de subsidiariedade). Engrandecimento nacional (gigantismo), pendores
centralizantes e autoritários, líderes carismáticos e populistas. Por vezes,
jacobina.
A direita orleanista aceitou a Revolução Francesa, mas quer
o Rei, limitado constitucionalmente, como fator de ordem e unidade. Economia
liberal, moral liberal, Estado secular. Instituições nascidas dos princípios da
Revolução Francesa, sociedade moldada por eles, tem algo de república coroada.
Líderes pragmáticos e gestores, em geral de mentalidade girondina.
Termino. O curso da lógica traz a pergunta: para quem não é
esquerdista, que tipo de direita preferir para o Brasil? Quais características
o movimento conservador deveria privilegiar. Respondo. Sou católico, propugno a
doutrina social da Igreja. Defendo o princípio de subsidiariedade e a ampliação
da influência da família na sociedade. Recuso o estatismo, o populismo para mim
é falsa solução para problemas reais. Convido-o, leitor, a alinhar as
características de sua preferência. E os perigos que pretende evitar com elas.
Tem motivo importante, o Brasil de hoje não é o de 1961, vergastado por Nelson
Rodrigues; na sociedade começam a se generalizar sem timidez conservadores e
reacionários. Os rótulos valem menos que os conteúdos. Que conteúdo terão tais
correntes de opinião daqui a alguns anos?
(periclescapnema.blogspot.com)
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