Antônio Cobra era, por esse tempo,
o mais reputado curandeiro do sertão. Às vezes, mesmo de longe, se lhe era
impossível vir à casa da vítima, de longe mesmo, com os seus processos
cabalísticos, efetuava a maravilha da cura. Antônio Cobra, em se tratando do tóxico
segregado pelas suas homônimas, era um semideus daquelas paragens. Quem
deixaria de o respeitar e admirar, se ele representava para aqueles homens
rudes o eminente Pasteur, imortalizado pelos seus trabalhos sobre a profilaxia
da raiva e de outras Moléstias contagiosas?! Ninguém; e por uma simplíssima
razão: - as provas irrefutáveis que a todo momento via com seus olhos. Milagre,
Magia, feitiçaria? O caboclo, que já orçava pelos noventa, era digno de acurado
estudo dos homens de ciência.
O coronel Chico Francisco de São
Francisco era o proprietário de uma Fazenda de gado do sertão da minha Terra
natal. Homem rico, laborioso e fino cavalheiro, fazia-se estimado por todos os
corações que auscultassem o de sua alma, sempre desejosa de fazer bem. Sua
mulher, dona Chica Francisca de São Francisco, era o reflexo da individualidade
moral de seu esposo. O coronel era um homem de uns setenta invernos primaveris
e dona Francisca, de pouco menos. Tinham apenas uma filha de 15 anos, dona Violeta,
tão formosa e modesta, como a sua irmã floral e era, por sua vez, o reflexo de
sua progenitora. Dona Violeta era a estrela polar do coração daqueles dois
velhos felizes.
A pouca distância da Fazenda do Coronel,
havia outra, cujo dono, o Capitão Vieira Martins, seu amigo e compadre, não lhe
era inferior na riqueza nem na bondade. Casado também e quase da mesma idade do
seu velho amigo, tinha um filho já formado em medicina, o qual chegara há um
mês do Rio de Janeiro. O Dr. Bento Luiz, o filho do senhor Martins, vinha
realizar um contrato feito entre os dois fazendeiros, no dia do seu natal. E
qual fora este contrato? O doutor Bento faria os seus estudos de humanidades,
completaria o seu curso acadêmico na Capital e voltaria ao sertão, para que se
efetuasse o ideal dos dois compadres e de suas esposas, comadres também. Quando
o jovem futuro doutor saiu do sertão, já não levava o coração, que pertencia a
sua futura consorte - dona Violeta, que o adorava também com toda a formosura
de sua alma.
Dentro de um mês, o casamento seria
celebrado pelo capelão da Fazenda do Coronel, e segundo era corrente, com extraordinários
deslumbramentos, para que permanecesse na memória de todos os coevos e, depois,
na tradição, a majestade daquela festa nupcial. Neste comenos, deu-se uma
catástrofe desoladora.
Um dia, pela manhã, dona Violeta
borboleteava pelos matos, a colher flores silvestres, quando foi surpreendida
pela presença de uma terribilíssima Salamanta, que, avistando-a primeiro,
formou-lhe o bote e cravou-lhe os dentes na perna direita. Dona violeta esvaia-se
em sangue, quando, por felicidade, passava pela estrada um boiadeiro,
recolhendo ao curral um boi tresmalhado. É desnecessário descrever ao leitor a
revolução nas duas Fazendas com a notícia daquela desgraça. Prefiro deixar a
sua imaginação, que, por menos fértil que seja, bem pode com vantagem dispensar-me
desse trabalho.
Que dizer da amargura do coronel, da
aflição de sua esposa, do profundo abalo do outro casal e do desespero do
noivo, o doutor Bento Luiz?! Quem, mesmo sem ser pai nem noivo, não sofreria
com aqueles pais e aquele noivo, e, finalmente, com todos os corações que
extremavam D. Violeta, diante daquela perspectiva funérea? Dona Violeta, a
violeta de todas aquelas almas, estava com o pé no cairel do abismo da morte!!!
O jovem recém formado , médico, e, por isso, conhecendo o perigo como ninguém e
confiado na terapêutica proveta de do seu colega o Dr. Fortunato Bocayuva, o
velho clínico daquelas cercanias, sem perder um segundo, montou no seu Faísca,
o cavalo mais corredor de todos as duas Fazendas, e rumou para a casa do antigo
esculápio.
Os episódios desta narrativa devem
ser rápidos como os de uma representação na tela mágica do cinematógrafo.
Poupemos a susceptibilidade do coração do leitor. Deixemos os pormenores e, assim,
fitemos a estrada real e veremos dois cavalos fumaçando a todo galope, em
direção da casa do Coronel. O Dr. Bento, galopando vertiginosamente, e mais e
mais esporeando o seu Pégaso, esquecia-se, talvez, de que o seu velho colega,
septuagenário como era, já não podia perpetrar aquelas bravuras. Mas o amor é
violento nas ocasiões supremas da desesperação.
Passemos, eu e o leitor, o rapidíssimo
volver de olhos na chegada dos dois galopadores, na ansiedade de todos do
lugar, no rebuliço labiríntico da casa, na amargura dos dois casais, na angústia
do noivo, e no exame da enferma, feito pelo sapientíssimo Dr. Fortunato Bocayuva.
Concluído o exame e receitados os
medicamentos para o veneno da mordidela ofídica, retirou-se o Dr. Fortunato
Bocayuva, comunicando ao seu colega que o caso era sério, mas muito longe de
ser desesperador.
A ciência já era possuidora de
armas possantes para destruir a virulência do tóxico das salamantas e outros
que tais. Que ficasse, pois, descansado e que no outro dia voltaria, pois não
julgava que sobreviesse algum acidente que obrigasse a um chamado, antes do dia
seguinte.
Previno ao leitor, mais esta vez,
que galopo nesta história, sem fazer caso das suas minudências, que, talvez,
fosse o mais interessante. Além disso, insisto: - nunca poderia ser um conteur,
porque fujo de toda a descrição, em que um sofrimento é o protagonista.
continuemos, pois, a fazer vista grossa às particularidades que esta narrativa
devia conter, se fosse traçada por pena de mestre.
Conquanto os medicamentos do Dr. Bocayuva
lhe houvessem atenuado as dores, o estado geral da enferma agravou-se ao
anoitecer. Novo chamado ao Dr. Fortunato; novo exame; novas prescrições, nova
despedida, e, infelizmente, (o que é pior!...) sem aquela frase: - “... longe
de ser desesperador”.
Quem fosse do sertão, já
perceberia, àquela hora, que a natureza tinha ânsias de amanhecer. Eram três e
meia da madrugada. As prescrições do esculápio tinham sido rigorosamente, e, mais,
religiosamente observadas. Mas ... nada de melhoras! Bem ao contrário!....
Novo chamado às 6 horas da manhã.
Nova vinda. Novo exame. Novas
cerimônias, novas torturas de saber o estado da enferma e... (maldição!!...) o
desengano!
O Dr. Fortunato acabava de
confessar, pesarosamente, Quem é a sua ciência tinha embotado as armas nas
arestas impenetráveis do grande mal! Nada mais tinha a fazer! Dito isso, abraçou
o seu jovem colega, montou na eguinha e com um - Paciência, meu amigo –
volatizou-se na recurva do caminho, aureolado por uma tremenda nuvem de poeira.
O Dr. Bento Luís vagava pelo
terreiro, como um alucinado, quando foi solicitado para dar uma palavra à tia
Sant’Anna, uma preta centenária, que tinha sido a sua ama de leite, e que era
chamada a Vovó de todo aquele sertão. No auge do seu desvario, relutou; mas, assediado
pelos rogos de seu pai, consentiu.
Tia Sant’Anna, que acabava de vir
do quarto da infeliz D. Violeta, varou a porteira e atirou-se súplice aos pés
do moço, pedindo-lhe que mandasse chamar, sem perda de um minuto, o velho
Totonho, a única pessoa que podia arrancar das gadanhas da morte aquela adorada
criatura.
A resposta foi um grito doloroso,
que repercutiu pelas bocainas daquelas matarias enflorescidas. A tia, porém,
não desanimou. Atirou-se de novo aos pés do seu filho de leite, chorando como
uma criança de três anos. Ouvindo todo aquele berreiro, acudiram todos, na
previsão da morte da filha do coronel.
Pedidos, rogos, súplicas,
implorações dos pais, dos futuros sogros, do capelão e, finalmente, de todos,
fizeram com que ele consentisse no pedido da Tia Sant’Anna, dizendo, porém,
que, além daquilo ser uma comédia, e, no seu caso – um desrespeito à ciência,
retirava-se da Fazenda, indo para longe, para não presenciar aquela pataquada e
esperar o golpe da fatalidade sobre o seu coração de amante e desgraçado.
Meia hora depois da retirada do Dr.
Bento Luiz para a outra Fazenda, chegava o portador do chamado ao Antônio
Cobra, trazendo o paletó do curador, o qual, segundo as suas ordens infalíveis
e imperiosas, tinha de ser, imediatamente envolvido em toda a perna, vitimada
pela serpente. E, ao encaminhar-se para o quarto da enferma, ia afirmando a
todos que o curandeiro lhe havia assegurado que as dores teriam de cessar dentro
de poucos minutos, depois do que ordenara que fizessem com o paletó, enquanto
ele, curandeiro, se ia preparar e se pôr em caminho da casa da sua nova
cliente.
E assim sucedeu. Em menos de vinte
minutos, o alívio era considerável. Tinham desaparecido as dores cruciantes. A
doente já sentia menos à adustão do esôfago e as dores do epigástrio, quando,
pela tarde, chegou o Antônio Cobra na Fazenda do Coronel, tranquilo e calmo, trazendo
sobre os ombros um grande saco, onde se aninhava misteriosamente uma multidão
de cobras de várias espécies. Antes de entrar no casarão , pousou o saco no
empedrado do terreiro, descobriu-se, fez uma pequena prece a Virgem Maria, e
foi tirando de dentro, primeiro - uma Jararacuçu , depois uma Cobra-Rainha, uma
Malha de Fogo, uma Cobra de Oco, uma Corre-Campo, uma Surucucutinga e, por
último, uma Salamanta.
Depois de trocar língua com elas,
dizendo lhes qualquer coisa apocalíptica, ordenou-lhes que se retirassem para o
mato, o que todas fizeram, sem a menor vacilação. Uma para aqui; outra para
ali; outra para lá; outra para acolá, cada uma tomava a direção que o curador
lhe determinava.
Daí a poucos momentos, saiu do
matagal a primeira das que soltou. Vinha só. E ele, persignando-se, dizia
baixinho: não é! Veio a 2ª, a 3ª e as outras, até que apareceu a Salamanta,
acompanhada de outra salamanta.
Então o curador, voltando-se para a
multidão que presenciava aquele espetáculo, disse, vitoriosamente “Foi esta!”
Mas, quando alguns homens, novos no
sertão, levantaram os seus cacetes de Massaranduba para matar o horrendo
réptil, Antônio Cobra, solenemente, gritou que, se o fizessem, com um pequeno
gesto enfureceriam todas aquelas
inocentes criminosas, não se responsabilizando pela morte da filha do bravo
Coronel Chico Francisco de S. Francisco e pelo resultado daquela imprudência.
Obedecido, e pronunciado o nome de
cada uma, ia ordenando o que, uma por uma, fossem as serpentes entrando no
saco, que abria com as suas mãos. Todas entraram, ficando apenas a nova Salamanta,
a ofensora de D. Violeta, esperando as ordens do curador.
Antônio Cobra, penetrando no
aposento da enferma por uma porta que dava para o terreiro, retirou o paletó da
ferida, sobre ela verteu um líquido verdoso que trazia num frasquinho, rezou,
depois fez a doente jurar que não mataria nem consentiria que outra pessoa
matasse uma cobra, fosse qual fosse. Por fim, persignando-se outra vez, saiu do
quarto, atravessou o terreiro, de extremo a extremo, proferindo, a todos que
lhe perguntavam pelo estado da enferma, esta frase redentora: “Está salva “.
E de fato. D. Violeta estava salva!
A tarde caminhava com pressa de
quem se quer ir embora.
Como já havia partido um portador
para comunicar ao Dr. Bento Luiz aquela notícia imprevista e decisiva, pois
durante todo o dia não tinham cessado as viagens de vai e vem para levar-lhe
novas de D. Violeta, (naturalmente, como
esperava o doutor, - a do seu falecimento), - naquele momento, no limiar da
porteira da fazenda, encontraram-se os dois: - o jovem clínico , que vinha açodado,
na impaciência de ver a realidade, - e Antônio Cobra, o Pasteur do sertão. O
curandeiro, com o saco cheio de terríveis répteis sobre os ombros possantes,
levava enrolada no pescoço a nova Salamanta, que, sem a sua terapêutica
sibilina, teria vitimado, fatalmente, aquele anjo de candura.
Agora é que eu juro ao leitor que
nunca me afoitaria a descrever esta cena, porque seria debalde. Duas palavras
apenas.
Quando se enfrentaram os dois, lado
a lado, ao transporem a primeira porteira da Fazenda, Antônio Cobra, o
Hipócrates da natureza, tirou, respeitosamente, o seu chapéu encourado e, com a
serpente anelada em seu pescoço, seguiu em caminho da sua guarapeira.
O doutor Bento Luiz empalideceu e,
não tendo ânimo de corresponder àquele cumprimento, tocou de leve com o chicote
na anca do seu cavalo, prosseguindo, nervoso, pela ansiedade de ver o seu
arcanjo, a sua Violeta reflorescida e pelo prenúncio da tempestade, que ia
desabar.
De há muito que a tarde plumbeava-se,
na iminência do aguaceiro. A poucos metros do pátio da Fazenda, estrondou um
furioso trovão e uma salamanta esbraseada, subindo do veludo de um cumulus,
atirou-se nervosa pela vastidão do espaço, como se tivesse perdido o néctar precioso
da sua crueldade, o veneno matador.
O doutor Bento Luiz, porque trazia
impressas na retina a imagem das duas serpentes: - a natural, que o curador
levava enrodilhada em seu pescoço, e a celeste, que acabava de riscar a nuvem
do céu, - fitou a serpente de ouro que se quedava imóvel e inofensiva em seu
anel simbólico, e, com um sorriso de descrença, galopou, em caminho do
santuário dos seus amores.
Pouco depois, surgia à noite, como
se fosse um dilúvio de cobras pretas, se destorcendo do pelo espaço afora e
envenenando, de negro, os últimos soluços da agonia luminar!...
(POEMAS BRAVIOS)
Catulo
da Paixão Cearense
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