O maior desejo de Maria era o de
ser cantora; nem tanto pela voz. Ela sabia não ser lá essas cosas era pelo
charme pela grana – tantos mil por uma apresentação. Nem achava que a voz de
algumas cantoras fosse o que dizem por aí, mas estão sempre faturando. Precisava
era de um pistolão de peso para encaminhá-la ao cenário artístico; um diretor,
um empresário de prestígio, um fazendeiro, um cantor de cartaz. Ser artista era
seu maior sonho, comparável somente ao de casar-se com um homem rico com
apartamento e carro. Aos quatorze namorou um rapaz mais ou menos assim, mas o
romance durou quase nada. Ela descobriu que o sujeito era homossexual e, aí,
foi o fim. Depois da desdita, andou perambulando com o dono de uma lanchonete
que se quebrou e desapareceu.
Olhava-se no espelho e sentia que
não era feia; não era nenhuma misse, mas reconhecia seus cabelos cacheados
atraentes, os olhos sombreados naturalmente, as pestanas longas; além desses
atrativos tinha o corpo esbelto e pernas bem feitas, os pés pequenos que
ficavam chique em sandálias de tirinhas; os seios, médios-pontiagudos; sabia
ainda ser meiga e preparada para os momentos necessários. Sentia essas coisas
com o pensamento voando sobre um palco, a multidão à frente, aplaudindo.
Ganharia um nome artístico. “Qual?” Um especialista diria. Ia participar de um
programa de calouros de porte nacional, patrocinado por uma tv famosa. Era só
inscrever-se e tinha um pistolão importante. “Menina bonita como você não deve
ficar perdendo tempo numa lojinha qualquer”, disse-lhe o pistolão influente,
fazendeiro e dono de uma emissora de rádio. “Quem sabe! Ele é um sujeito
poderoso”. Cantaria uma música baiana das melhores, nada daquele romantismo
ultrapassado me besta. Teria que ensaiar bem com o conjunto. O pistolão voltou
várias vezes; o último encontro deu-se no escritório dele, a boquinha da noite.
“sente aqui”. O “aqui” dele era nas próprias pernas. Maria estranhou o convite.
“Por quê?” Ela não sentou-se e fingiu não entender; o sujeito levantou-se e, com
as duas mãos, apalpou nos seios dela que afastou-se , encostando-se à parede; “peste”,
pensou mas não disse. “Bobinha”, disse-lhe ele, avançando macio. “Eu grito”.
Ele se acalmou treiteiro. Maria abriu a porta e correu para o elevador,
assustada, apavorada com o sujeito que era muito feio e agressivo, rangendo os
dentes para ela. Tudo acabou aí.
Afastou-se do espelho e saiu para o
quintal onde foi escovar os dentes na pia junto à cerca lateral; ao lado, a mãe
dela, com uma bacia cheia d'água, molhava umas leiras de alface; duas galinhas
pedreses ciscavam pelo terreiro; o sol vinha saindo desmanchando as sombras no
quintal; o pai, apelidado de Bené, ainda dormia na marquesa antiga comprada
quando casou; ele sentia frio e se enrolara até o nariz com uma coberta
dorme-bem com duas listras vermelhas atravessadas. Ela sentia o envelhecimento
do pai. “Trabalhou com um bicho para criar meninos, ganhando ninharia”. O
pistolão teria sido decisivo em sua participação no concurso de calouros, a
começar pela compra de roupa bem cara, sapato muito chique, tudo o mais
necessário. “E depois? Ora, foi logo antes. Quem mandou ele apalpar meus seios!
Sou alguma prostituta? Maria afastou-se espantada e sumiu entrando no elevador que
havia chegado.
No auditório eu estaria apinhado do
e gente, a mesa julgadora presidida por pessoas importantes. Não pôde ir. Sem o
pistolão nem pudera pagar a taxa de inscrição, quanto mais comprar um vestido
decente, um sapato novo. “Isso influi”. Passou o dia pensando no assunto, no
auditório superlotado, no conjunto musical; as amigas do bairro assistindo, os
clientes da lojinha admirados, os colegas de trabalhos torcendo, e seu Bené ao
lado da mãe dela, todo orgulhoso. “Besteira, perdi tudo só por causa de uma
pegadinha nos peitos!”
Estava na hora de sair para o
trabalho, e saiu andando apressada para o ponto do ônibus; um carro passou em
velocidade, um vento frio batia em seu rosto e balançava as árvores margeando o
caminho. Apalpou os seios com as duas mãos e lembrou novamente do sujeito.
(LINHAS
INTERCALADAS)
Ariston
Caldas
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