Inácio Mendonça
chegara para fixar residência no arraial: era um cidadão muito gentil, e de
repente passaria a conquistar a amizade de todos. Figura por demais simpática,
apesar de ser um sexagenário notava-se que era um homem saudável, e com muita
disposição para o trabalho.
Tinha por
companheira dona Laura, uma senhora muito bonita, ainda no esplendor da sua
juventude. Em companhia do casal, moravam duas lindas mocinhas: a mais nova
chamava-se Ana e era filha do casal; Ângela, a mais velha, embora gozasse do
mesmo carinho de Inácio, viera para sua companhia, ainda pequena. Ao chegar ao
arraial, ele solicitou de Antônio de Arcanjo, um terreno para construir uma
casa, no que foi prontamente atendido, pois o caboclo jamais negara um pedaço
de terra alguém.
Num curto
espaço de tempo, construiu uma casa tipo chalé, onde passou a viver, na mais
absoluta tranquilidade, com a sua família. Mais tarde, vendo que a tendência
natural da fazenda era tornar-se um povoado, sentiu a necessidade de implantar
um armazém de secos e molhados, que atenderia aos moradores do lugar, tirando-os
do incômodo de terem que fazer as compras em Ilhéus ou Itabuna. Inácio logo
modificou o aspecto da sua casa: abriu três
portas de frente, e fez dali um
grande ponto comercial. A partir daquele
instante, estava surgindo a primeira casa de negócios na Fazenda Boa Vista,
realmente uma grande iniciativa.
Havíamos chegado
naquela localidade, não fazia muito tempo. O meu pai logo tornou-se um dos seus
assíduos fregueses, ganhou a credibilidade de Inácio, e passou a comprar fiado
no seu armazém. Confesso, saudoso, que eu era fã incondicional do negociante:
aos sábados íamos fazer as compras. Eu fazia questão de acompanhar o meu irmão
mais velho, porque na verdade eu gostava do seu jeito simples e prestativo;
admirava-o pelo zelo com que ele tratava os seus clientes. Havia outro detalhe
que me empolgava: era quando ele pegava a sua pena para fazer as devidas
anotações. Cidadão assaz instruído, sabia contar e escrever muito bem, o que me
deixava boquiaberto pela habilidade com que o fazia, mergulhando
intermitentemente a velha pena no tinteiro.
Tenho certeza
de que Inácio também gostava de mim, e digo isso porque, quando eu ia a sua
venda, saía de lá com os bolsos cheios de caramelos. Inácio jamais mereceu ser
traído, no entanto, qualquer descuido era fatal: eu roubava-lhe as bananas,
para comê-las com farinha no caminho de casa, e por sorte minha ele nunca
desconfiou. Se porventura ele descobrisse as minhas artimanhas, a nossa amizade
estaria rompida para sempre. Seria uma calamidade.
Vale
registrar aqui um episódio, que, se não tem algo de fascinante, no entanto
marcou bastante a vida pura e imaculada do arraial, porque esse fato, - para
muitos desagradável, - envolveu a família de Inácio Mendonça.
Lá prás bandas do Japu, - distrito
de Ilhéus, - havia um pequeno fazendeiro por nome de José Laudelino. Um jovem
simpático, bastante educado, e de família tradicional que, a exemplo de outros
posseiros daquela região, escoava o produto da sua fazenda no lombo dos
animais, passando pelo arraial da Fazenda Boa Vista. Na época das “cheias”, a coisa
tornava-se mais difícil e penosa, poiso o Rio Cachoeira dificultava o comércio
dos fazendeiros, e, consequentemente, afetava diretamente os moradores do Salobrinho,
que ficavam impedidos de usarem a farinha de mandioca e congêneres. Inácio
comprava a farinha e o cacau de José Laudelino, e foi através das negociações,
que se tornaram grandes amigos. Tamanhas eram as afinidades, que o rapaz de já
tinha acesso livre à sua residência e paralelamente gozava do prestígio e
confiança da família. A cada dia que passava, o relacionamento aumentava: eis
que num lampejo, o jovem percebera que estava apaixonado pela mulher do amigo e,
para maior ilusão, viu também que estava sendo correspondido na sua paixão
desenfreada.
Os dias
passavam, e Inácio continuava indiferente àquele romance, porque sempre
acreditou na fidelidade da sua mulher e jamais passaria por sua cabeça que a
companheira de tantos anos lhe trocasse por outro homem de uma hora para outra.
Um dia, porém, desconfiado do tratamento
delicado e excessivo que Laura dedicava José Laudelino, Inácio pôs-se a duvidar
da sua fidelidade. Entre ambos existiria mais do que uma simples amizade,
pensou ...
Assim,
depois de uma meticulosa investigação, usando a todo momento a discrição que lhe
era peculiar, ele chegou à conclusão de que já não mais havia motivos para
duvidar de nada.
Era uma
manhã de sábado. Sob um sol escaldante, José Laudelino chegava do Japu, sem dar
demonstrações, mas cheio de saudade da mulher amada. Estava cansado da longa
viagem. Fatigado do sol verão, apeou do cavalo, e depois de atrelar os animais
ao mourão, subiu célere as escadas do armazém. Sempre sorridente, foi logo
saudando os fregueses que ali estavam, e penetrou no lar de Inácio. Com toda
serenidade disponível, Inácio atendeu tranquilamente aos seus clientes e, em
seguida, foi ter com o “galã”, que àquela altura encontrava-se confortavelmente
sentado na sala de espera conversando com Laura.
Inácio,
calmamente, sentou-se ao lado de José Laudelino, passou a mão ainda suja de pó
de farinha pelos cabelos e, dando um tapinha amistoso na nas costas do mancebo,
disse taxativo: “Zé, sei que estás apaixonado... Farei o teu casamento com Laura”.
Surpreso, ante a atitude inusitada do comerciante, Zé ficou estático, fingindo
não haver entendido nada que ele dissera. Procurou controlar-se, porque devido
ao susto, sentira que havia perdido a fala e, só depois de alguns instantes,
quando reunira condições de se pronunciar, foi aproximando-se da porta que dava
acesso à rua e, um tanto desconcertado, perguntou em tom desesperador:
- O que
está acontecendo, sêo Inácio? Está ficando maluco?
- Calma,
companheiro! - disse Inácio procurando tranquilizá-lo, - não tenha receio, pois
não vejo nisto nenhum absurdo: já estou velho, e seria para mim a maior
felicidade, esta união.
Laudelino,
visivelmente nervoso, respirou mais aliviado, e agora, tentando fugir do
assunto, aproximou-se do balcão e, esboçando um sorriso sem graça, foi
perguntando: quantos sacos de farinha vai querer, ‘sêo’ Inácio? Entendendo o
embaraço do Zé, ante tal situação, o velho resolveu deixá-lo à vontade, porque
tinha a certeza de que aquela história não terminaria ali.
Não
demorou muito para o dia do casamento. O povo do arraial, ao tomar conhecimento
do fato, passou a lançar críticas das mais contundentes em forma de repúdio à atitude
daquele homem, e até teciam comentários sobre o seu excesso de calma, e mormente
a maneira com que aceitava tamanho escândalo. Ninguém aprovou o comportamento
de Inácio, ao entregar, sem nenhuma repulsa, sem qualquer resquício de
violência, a sua mulher a um aventureiro qualquer. Aquele era um caso inédito
na vida pacata do Salobrinho, e representava um desrespeito, um ato sórdido e
covarde para as famílias puritanas dali.
Foi dessa
maneira que Laura deixou a companhia do seu marido, sem constrangimento e sem
remorso de ambas as partes. Ele aceitara tudo aquilo com a maior naturalidade,
e depois de ter participado do casamento da sua própria mulher, passou a viver
sozinho, lutando pela sobrevivência, como se nada tivesse acontecido. Acossado
pela doença, viria a falecer, depois de muitos anos, num dos hospitais de Ilhéus.
De qualquer forma, Inácio foi uma figura importantíssima no desenvolvimento do Salobrinho,
por ter sido um dos seus fundadores. A ele rendamos póstumas homenagens, pelos
relevantes serviços prestados à comunidade. Quanto à José Laudelino e dona Laura,
eles formaram um casal muito feliz, e atualmente residem no mesmo distrito. A
casa que outrora pertenceu a Inácio Mendonça, ainda existe, como reminiscência
de um passado que já vai distante. Ressalte-se que esta casa sofreu grande
reforma e está atualmente transformada numa moderna residência.
(SALOBRINHO – ENCANTOS E DESENCANTOS DE UM POVOADO)
Sherney Pereira
..................
---
Sherney de Souza
Pereira nasceu a 11 de outubro de 1948 no eixo Ilhéus/Itabuna, mais
precisamente no município de Ilhéus. É cordelista, com vários trabalhos
publicados e autor do Hino da Universidade de Santa Cruz, premiado em concurso
público por ocasião do 4º aniversário da FESPI.
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário