Da sacada do apartamento, jogava o milho pisado para os
pombos. Via com prazer a cena inquieta dos bicos catando as migalhas na rua.
Comprava o passarinho com a gaiola, na feira, aos sábados.
Abria a portinhola, ficava feliz vendo o bichinho bater asas, desaparecer.
Tomava a direção da mata.
Comprara o binóculo para observar com detalhes o espetáculo
dos periquitos voando acima dos telhados, próximos ao edifício onde morava,
erguido na colina.
Gritos constantes das aves. Até que se empoleiravam nas
árvores perto da igreja.
Acordavam cedo, nuvem de asas acima da torre da igreja.
Tomavam depois a direção da mata. Voltavam pela tarde em busca do poleiro nas
árvores.
Aqueles bichinhos foram feitos por Deus para voar pelas
estações temperadas de sol e chuva. Bicar nas manhãs frutíferas. Alegrar a
natureza com voos e cantos. Cumprir a lei da reprodução da natureza, perpetuar
a espécie. Preso algum deles na gaiola, a vida do cantor prisioneiro passava
sem graça, em canto e plumagem perdia o sentido.
Igual a um castigo destamanho só o de alguém que nascesse
sem os braços ou arrancados do corpo em algum acidente, por exemplo.
Teve a certeza dolorida disso quando foi atropelado por um
caminhão, que passou na rua desembestado.
Com a pancada, perdeu um dos braços, o outro mutilado, sem a
mão, imprestável também. Sorte não ter morrido.
Difícil acostumar com a situação precária. Abatia seus
sentimentos e nervos. Os olhos denunciavam a alma entristecida.
Os de casa não ligavam para ele. Só servia quando era
gerente de banco, sustentando a mulher e os três filhos, a cunhada, a sogra e o
sogro.
Deficiente, impossível agora dar milho pisado aos pombos.
Ficava em silêncio, sentindo pena de si mesmo, a situação irreversível.
Até que uma manhã acordou com umas asas no lugar dos braços.
A princípio achou o acontecimento estranho. Dessas coisas que por mais que se
force a inteligência não se acha a explicação lógica do seu acontecimento. Um
milagre, para Deus nada é impossível.
Foi até a sacada. De lá alçou voo. Não hesitou, seguiu na
direção da mata. O mundo visto do alto pareceu-lhe então perfeito, cheio de
brilho e cores.
Cyro de Mattos é poeta e ficcionista. Premiado no Brasil,
México, Itália e Portugal. Publicado por editoras na Europa. Doutor Honoris
Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia).
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