Abismo da Razão
Cyro de Mattos*
Anos de
fogo, sombras, pesadelos. O mal sem limites.
Corpos usados para experiências absurdas. Mães separadas dos filhos,
maridos das mulheres. A terra virada no inferno. Milhões de inocentes
eliminados sem dó, na enchente a morte. A liberdade recuada para os
subterrâneos mais indignos.
Sirenes, bombas, torpedos. Explosões, crateras,
escombros. A fera ressurgia da antiga
caverna, assoberbada galopava nas trevas. Não concedia a trégua, bania a razão
para os confins inimagináveis do abismo mais profundo. A vida nutrida de fúria galopava na
engrenagem monstruosa do absurdo, o elogio de nadas, tudo sem sentido.
Orgulhoso o hominho irascível, inundado de prazer, sorrindo de contente com o holocausto,
rostos de penúria, estilhaços de gente por todos os cantos.
No final, o triunfo
do amor. Soldados uníssonos no campo da vitória. Retirada do estúpido abismo, de
forças dementes a razão açoitada no
gesto vil, a pobre coitada ainda resistia.
Encerrada com os corpos de pessoas fuziladas, o tenebroso acúmulo de
ossatura, o teatro fétido nos odores da morte, empilhada nos canais enormes.
Grande
passeata pelas ruas do lado de cá, gente grande e pequena dando vivas à
liberdade. O sorriso que alarga o rosto
apareceu na rua de barro batido, os habitantes da cidade pequena em euforia
incontrolável. Bombas inimigas caladas
para sempre. Já não existem mais as horas do mundo cheio de grito e agonia. Os
sinos tocando sem parar a canção constante da paz, antiga, belíssima, irradiando
bondade e alegria.
Acreditava-se
nos dias promissores. O homem redimido agora, renascido da razão, nervos fraternos, sentimentos do amor.
Cânticos emanavam do peito o bem supremo da felicidade. Não mais o coração
esmagado sob as patas impassíveis de manadas enfurecidas. Nos ares libertos da
opressão, bemóis da cantiga geral da união como verdade.
A praça, um bloco
extenso de gente, comoventes olhos brilhavam na direção do homem fardado no
palanque. De volta da guerra, o rosto do herói numa máscara feita de tecidos
sólidos. O locutor chamou o guardador dos ramos da vitória. Entregou-lhe o microfone. “Comece, por favor,
estão ansiosos para ouvir seu relato sobre o horror.” O homem disse para o locutor, tinha o olhar imóvel diante da multidão, soltando
murmúrios, o vozear confuso, “não posso”.
“Faça um esforço”, retornou o locutor, animando-o. “Não tenho palavras para descrever o terror.”
Acrescentou, mastigando as palavras, “é impossível”. O locutor ainda perguntou, “não tem
palavras?” O herói fez um esgar medonho,
deixou todos com a expressão no assombro diante do silêncio impassível. Com dificuldade, confirmou, “perdi as
palavras nos anos de fogo e bombardeio.”
A multidão
frustrada, gente triste rumo às suas casas, passos pesados, arrastados, em
silêncio, rostos para o chão. Uma procissão de almas penadas, visagens de outro
mundo. O herói havia ajudado esmagar uma
mulher diabólica, que arrasa os sonhos, bombardeia projetos, dizima a
maravilha, mata a esperança, tritura a ternura, no lugar põe o abismo, que
engole a razão sem remorso. Com sua
corrida desembestada, pisoteia tudo que nasce do amor. Era importante ouvi-lo. Inútil sua palavra
congelada. Imprestável para relatar o terror.
Sua razão não tinha sã consciência para descrever a imensa desgraça que
viveu no pior abismo.
*CYRO DE MATTOS publicou mais de 50 livros, de diversos
gêneros. Autor com prêmios importantes.
Também editado no exterior. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia.
Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia)
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