- Dulce! Dulce! - ele chamou assim. Instante depois a luz se
apagou, mas tudo continuou em silêncio.
Quando era
menino, acordou assustado altas horas da noite sentindo os olhos como se
estivessem grudados de goma, com sensação de quem não sabe onde está. O telhado
era preto, as paredes eram pretas e nem uma réstia aparecia pela cumeeira, provavelmente
era noite de escuro. O jeito foi gritar, assustando o pai e a mãe que dormiam
num quarto ao lado.
Mas Dulce não
sentia medo. Ela teria apagado a lâmpada, indo sozinha deitar-se na cama, pensando
coisas à esmo, no escuro.
- Será que
ela está sozinha? - indagou-se de súbito
com pensamento vadio. Sentiu ciúme e voltou a chamá-la. Numa casa em frente um
sujeito barbudo abriu uma janela e tornou a fechá-la. Estaria curioso ou
incomodado.
Lembrou de
um vizinho de cara redonda e esparrada que morava parede-meia e se parecia com
um ajudante de caminhão que conhecera na infância. Já o vira conversando com
Dulce no passeio e na conversa o sujeito apalpava um braço dela. Lembrou que os
quintais das duas casas eram separados por um muro baixo que tinha ao lado um
pé de Pitanga e, em cima, uns jarros com flores amarelas.
Teria
ouvido pisadas dentro da casa que continuava escura como Breu. Nem podia entrar
para a varanda, toda lacrada a cadeado. Impaciente, afastou-se até uma esquina
próxima e ficou de olho para um lado, para outro, confuso e nervoso. Voltou e
chamou novamente, quase gritando. Aí ouviu ruídos na fechadura. Era Dulce destrancando
a porta:
- Ô, gente!
- Ela falou meio assustada.
- Está
surda! - Exclamou ele.
- Tava tomando
banho - acrescentou Dulce.
- Por que
apagou a luz? - Fui me deitar - concluiu ela, contrafeita, trancando a porta
que rangeu sutilmente. A cabeça dele perturbava-se a cada instante cheia de
interrogações. Pensou novamente no sujeito da cara redonda quem residia ao lado.
O muro que separava os dois quintais passou-lhe outra vez pelo juízo, queimando-lhe
o miolo. Entrou para o quarto. Na cama, um cobertor desordenado, dois
travesseiros desalinhados e uma toalha de rosto pendurada na cabeceira. “Alguém
teria escapulido pela porta dos fundos” – maldou, rebuscando imagens criadas por
sua imaginação embaralhada cheia de cismas. Observou a posição dos objetos, dos
móveis. Tudo no lugar de costume. Pensou farejar os panos da cama, mas passou
um rabo de olho para Dulce e acanhou-se. Apalpou um braço dela - estava quente
e enxuto. “Ela não tomou banho agora coisa nenhuma. Está mentindo”. Admitiu, já
irritado. O vizinho da cara redonda voltou a infernizá-lo pulando o muro baixo e
cheio de flores, sustentando com uma mão o cós da calça despencando. Foi ao
sanitário e viu bem que o piso do banheiro estava enxuto. “Ninguém tomou banho
agora por aqui. Mulher é bicho do capeta!” – resmungou. Ao sair do sanitário,
cravou um olhar duro para Dulce, mirando-lhe de cima a baixo. Aí o telefone
tocou. Dulce atendeu dando-lhe as costas e falando muito baixo, não lhe
permitindo ouvir coisa nenhuma. Depois, mordeu o lábio inferior, apertou o olho
e desligou o aparelho.
Sem mais
questionar nada com ela nem a inquirir sobre coisa alguma, voltou para o quarto
e deitou-se de papo para cima, jogando um braço encolhido sobre a testa.
Passou o
resto da noite sem pregar um olho, virando-se de um lado para o outro, cheio de
maldade e de dúvidas. Ao amanhecer tirou uma madorna e sonhou com o sujeito da
cara redonda pulando o muro do quintal.
- Pilantra!
- gritou, atordoado, já sentado no meio da cama. Dulce, de sono solto, mexeu-se
de leve e ressonou profundamente, virando-se para a parede.
- Porra!
- Acrescentou ele, já perfeitamente acordado.
(LINHAS INTERCALADAS – 2ª Edição 2004)
Ariston Caldas.
* * *
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