(São João de Meriti, 1946 – a rede de casal)
A casa
simples e agradável, situava-se no alto de pequena colina, a chácara toda media
vinte e um mil metros quadrados cobertos por oitocentas laranjeiras. Pés de toranjas
de duas ou três variedades, limeiras, limoeiros, pés de fruta-pão,
sapotizeiros, goiabeiras, mangueiras, mamoeiros completavam o pomar. Uma louca
criação de aves – galinhas de raças, patuassus, gansos, marrecos – animava o
Peji de Oxóssi, nosso esconderijo, situado entre Caxias e São João de Meriti,
no estado do Rio. Nele Zélia e eu curtimos enfim nossa lua-de-mel.
Vivíamos
juntos desde julho de 1945, mas não nos sobrava tempo para namorar tanto quanto
desejaríamos: eu dirigia o cotidiano Paulista do Partido Comunista, o Hoje, tarefa
que tomava a maior parte de meu tempo, Zélia se revelara imbatível ativista da Comissão
de Finanças. Como se fosse pouco, a campanha eleitoral começara. Candidato a
deputado federal, eu saía nos fins de tarde para comícios noturnos no interior,
chegava pela madrugada. Resolvemos transferir a lua-de-mel para depois das
eleições.
As
eleições realizaram-se em novembro, deputado eleito deixei com a direção do
partido minha carta de renúncia, partimos de viagem eu e Zélia. Viagem de
núpcias, já era tempo.
Apenas começávamos
a sentir o sabor da lua de mel, passáramos alguns dias no Rio Grande do Sul, na
chácara de Henrique Sclair, estávamos no Uruguai, devíamos ir a Buenos Aires, quando
chegou o telegrama urgente de Prestes reclamando minha presença no Rio daí a três
dias. comuna enquadrado, tomei o primeiro avião para o Brasil, Zélia comigo, ansioso
para saber o motivo da intempestiva convocação.
Outro não era que o de tomar posse da
cadeira de deputado. Ora, eu condicionara a aceitação de minha candidatura - escritor
já bastante popular, meu nome traria votos para a legenda do Partido – à garantia
de que, se eleito, renunciaria ao mandato dando lugar a convocação do suplente.
queria retornar a meu trabalho literário, já bastante comprometido pela
atividade de militante. Recordei a Prestes o compromisso assumido pela direção.
Antes de viajar entrega a Arruda Câmara o documento de renúncia. Prestes estava
a par, salientou que fora ele quem levara a direção a admitir a minha
exigência - podia um militante por
acaso fazer naquele então qualquer exigência, justa, mínima, fosse qual fosse, ao Partido? Por isso mesmo sentia-se no direito de apelar para minha consciência de
comunista responsável: que iriam dizer aqueles eleitores que tinham votado em
mim, sobretudo os não comunistas, se eu não assumisse? Iriam acusar o Partido de
ter usado meu nome para obter votos, é estratagema sujo, malandragem, os
inimigos se aproveitariam para fazer a maior exploração e por aí afora, aquela argumentação.
Propôs-me assumir o mandato por três meses e então efetivar a renúncia. Três
meses, nem um dia a mais, assegurou-me Prestes.
Resolvemos
não alugar apartamento no Rio onde certamente o Partido me sobrecarregaria de
tarefas, além das decorrentes do trabalho parlamentar, e ocuparia o tempo de
Zélia, a Comissão Nacional de Finanças ameaçava requisitá-la. Na intenção de
escrever um romance já amadurecido na cabeça, Seara Vermelha, preferi ficar o
mais longe possível do Comité Central. Assim adquirimos o sítio de Laranjeiras e
nele vivemos durante ano e meio: um caseiro bastava para cuidar das plantações e
das aves: as aves merecem capítulo à parte. Nina, sua filha, se ocupava da
casa.
O casal
húngaro que plantara o terreno e elevara a casa tinha o gosto europeu do
conforto e, ao lado da vivenda, à sombra das árvores, construíra uma espécie de
pátio, local de lazer, sítio de repouso. Enredadeiras subiam pelos pilares de
alvenaria, flores explodiam em cada recanto, mesa rústica onde pousar pratos e
copos, garrafas, sobre as lajes do chão espreguiçadeiras estendidas, penduradas
dos galhos das mangueiras redes cearenses, brancas e amplas, de varandas bordadas,
redes de casal. Assim era o Peji de Oxóssi, pequeno paraíso.
Ali
transamos, indóceis, adoidados, nossa tão adiada lua de mel. Zélia parecia uma
menina; o alemão, nosso vizinho, pensava que ela fosse minha filha, aliás passei
a vida ouvindo a mesma repetida pergunta sobre Zélia: é sua filha?
Acordava cedíssimo, trabalhava no
romance boa parte da manhã, por vezes a ele voltava à noite - ah, o bom tempo em
que varava a noite batucando na máquina cenas e capítulos. Após o almoço, às treze
horas, tomava um carro de aluguel, contratado por mês para me levar e trazer do
Peji a Caxias - os dez por cento dos
proventos de deputado que o Partido me deixava davam exatos para pagar esta
condução: eu devia viver de meus direitos autorais, segundo a direção. Em Caxias embarcava no ônibus que
me depositava na Praça Mauá, daí trotava até o Palácio Tiradentes onde
funcionava a Assembleia Nacional Constituinte formada pela Câmara e pelo Senado
reunidos. A sessão começava às quatorze horas, eu assistia, participava - extremamente
ativo na Comissão de Educação e Cultura -, quando os trabalhos se encerravam fazia
o caminho de volta, em geral chegava em casa entre sete e oito horas da noite. Por
vezes, em dias de sessão noturna, não tinha hora de chegar.
Terminado
o jantar Zélia e eu costumávamos descansar no pátio onde corria a brisa, eu lhe
contava os acontecidos do dia, ela ouvia ávida por detalhes sobre a atuação da
bancada comunista - a primeira num parlamento brasileiro. Por vezes adormecíamos
no embalo da rede. Numa daquelas redes cearenses, de casal, João Jorge foi
feito, em noite de lua cheia, a luz das estrelas e ao ruído dos grilos.
(NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM)
Jorge Amado
..................
(Bahia, 1990 – o porquê das coisas)
“Meu neto
Jorginho, filho de Rízia,
aquela mãe!, caçula de João Jorge, às vésperas de
completar seis anos, constata a coincidência
de nomes, parece-lhe estranha, me interpela no desejo
de entender o porquê:
- Vô, você
também se chama Jorge – como eu?
......................
JORGE AMADO - Quinto ocupante da Cadeira 23 da
ABL, eleito em 6 de abril de 1961, na sucessão de Otávio Mangabeira e recebido
pelo Acadêmico Raimundo Magalhães Júnior em 17 de julho de 1961. Recebeu os
Acadêmicos Adonias Filho e Dias Gomes.
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