(Paris, 1949 – paloma)
De ministério
em ministério, de repartição em repartição, acompanho Pablo Picasso pelas ruas
de Paris, no esforço para resolver o problema da estada de Pablo Neruda na
França. Trotávamos de déu em déu, o dia é especial para o pintor: Françoise,
sua mulher, fora para o hospital com dores de parto. Ele desejava menina, se
chamaria Paloma: a Paloma da paz, desenho de Picasso, cobre os muros da cidade
na propaganda do I Congresso Mundial dos Partidários da Paz que vai se iniciar
no dia seguinte na sala Pleyel.
Neruda
desembarcara em Paris uma semana antes, habilitado com passaporte falso o que
o identificava cidadão guatemalteco don Antônio dos anzóis carapuça, de bastos
bigodes, adido cultural, qualquer coisa assim. O passaporte lhe fora fornecido
por Miguel Anjel Asturias, embaixador da Guatemala na Argentina que, ao atender
à necessidade do amigo, punha em jogo o cargo e a carreira. Não hesitara um
minuto quando Pablo, fugitivo do Chile onde havia sido expulso do Senado, lhe
colocara o problema.
A
princípio conhecida apenas por mim e por Alfredo Varela - o romancista de El Rio Oscuro, dirigente do pecê
argentino -, por Laurent Casanova responsável no Bureau Político do pecê
francês pelos problemas culturais e pelo movimento da paz, por Louis Aragon e
François Leclerc em cujo apartamento estava hospedado, a presença do poeta,
secretíssima, logo se tornou segredo de polichinelo. A comitiva de admiradores
engordava a cada dia com a chegada para o Congresso de intelectuais
latino-americanos: Juan Marinello, Nicholás Guillén, Miguel Otero Silva,
Alfredo Gravina, o pintor Venturelli. Passaporte ilegal, Pablo estava impedido
de participar do conclave e corria o risco de ser detido e posto fora da França
a qualquer momento.
De
autoridade a autoridade, Picasso encaminha a solução, eu o acompanho, sou de
pouca ajuda, mas faço-lhe companhia. De meia em meia hora entramos num bistrô,
Picasso telefona para o hospital, pede notícias da parturiente, fica sabendo que Françoise ainda não deu à luz. Numa dessas vezes, porém, a pergunta é
acolhida com hosanas: nascera a menina Paloma, a mãe passa bem, Picasso exulta.
Ora, o
problema de Neruda, àquela hora, estava praticamente resolvido, restavam
detalhes finais, deles eu poderia me encarregar sozinho. Vai ver tua filha e
tua mulher, propus, Picasso recusou: só quando terminar. O Ministério do Interior
e o Quai d’Orsay encontraram por fim a
solução: Pablo deixaria a França de carro, a polícia da fronteira estaria
avisada para não criar problema, voltaria assim que tivesse passaporte em ordem.
Na suíça,
onde La Hormiga* o aguardava, um ex-cônsul do Chile, admirador incondicional,
prolongara velho passaporte chileno que Delia trouxera de Santiago. O ex-cônsul,
aposentado, guardara os timbres e os carimbos, poderiam ser de utilidade um
dia, foram. Assim o poeta regressou a Paris não mais na pele de don Antônio dos
anzóis carapuça e, sim, na do chileno Naftali Ricardo Reyes, seu nome
verdadeiro. Ainda não oficializara o pseudônimo, o que fez quando retornou ao
Chile: nem Antônio dos bigodes, nem Naftali Reyes, para sempre Pablo Neruda,
poeta e militante.
Picasso
cuidou do caso até vê-lo completamente resolvido, me encarreguei da viagem,
designei guarda-costas, dois jovens comunas brasileiros no gozo de bolsas de estudo
em Paris, Paulo Rodrigues e Alberto Castiel, levaram o bigodudo don Antônio à Suíça,
trouxeram Delia e Pablo para a França, ele de passaporte legal e sem bigodes.
De volta
ao hotel contei a Zélia as andanças do dia, os telefonemas de Picasso para o
hospital, o nascimento de Paloma.
- Se um
dia tivermos uma filha ela se chamará Paloma - Decide Zélia, arrebatada.
O caso se
deu em 1949, nossa Paloma nasceu e 1951. Até parece de propósito, a sementinha
foi posta em Varsóvia durante o II Congresso Mundial dos Partidários da Paz, a paloma
de Picasso nos muros da cidade, inspiradora.
* La Hormiga, apelido de Delia del Carril, na época mulher
de Neruda.
(NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM)
Jorge Amado
..................
“Nada mais
cansativo, mais estafante, mais terrível do que as reuniões ditas sociais, coquetéis,
recepções, jantares, festinhas, outras chatices semelhantes.
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JORGE AMADO - Quinto ocupante da Cadeira 23 da
ABL, eleito em 6 de abril de 1961, na sucessão de Otávio Mangabeira e recebido
pelo Acadêmico Raimundo Magalhães Júnior em 17 de julho de 1961. Recebeu os
Acadêmicos Adonias Filho e Dias Gomes.
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