Um ruído
suspeito me acorda, apuro o ouvido, parece-me provir da sala de jantar. levanto-me
evitando fazer barulho, saio do quarto, avisto luz acesa na cozinha. vou em passo
de gato, surpreenderei o ladrão, a surpresa será a melhor arma, não
tenho revólver em casa. Aliás nunca possuí nem usei revólver, na Câmara dos Deputados eu era o único parlamentar desarmado, me lembro do assombro de Silvestre Péricles de Góes Monteiro quando abri o paletó e ele constatou a ausência
de pau-de-fogo em minha cintura: você é maluco.
Na cozinha,
o que vejo? Dona Angelina, mãe de Zélia, e minha mãe Lalu, envergando uma e
outra camisolas de dormir como convém a viúvas idosas, chupam mangas - manga
se chupa, não se come, caso se deseje fruir o prazer completo -, rostos lambuzados. O mel escorre dos lábios para o queixo, mancha as pulcras camisolas. Chupam as
mangas com avidez e competência, o ruído que me pareceu suspeito procede das
bocas das duas senhoras no gozo da fruta colhida no jardim da casa, mangas-carlotas
suculentas.
Regresso ao quarto, pé ante pé, para
que as duas não me vejam, morreriam de encabulamento. Aproveitam a calada da
noite para o pecado da gula, o sabor das mangas chupadas assim às escondidas torna-se
divino. Lalu e Angelina estalam as línguas.
***
Onde quer
que eu chegue, nas comarcas do mundo, províncias e metrópoles, vilarejos, encontro
mesa posta e escuto uma palavra amiga.
Alguém me
diz: li teu livro, companheiro, ri chorei, me comovi. Tereza Batista mudou
minha vida, Pedro Arcanjo me ensinou o pensamento livre, a pensar por minha
cabeça, aprendi com Quincas a não ser o outro e, sim, eu próprio, com o
comandante Vasco Moscoso de Aragão troquei o medíocre pelo sonho, aprendi o
amor com Gabriela e dona Flor dele me deu a medida exata: mais poderoso do que
a morte. És escritor porque eu existo, teu leitor: chorei e ri, me emocionei ao
ler teu livro.
Onde quer
que eu chegue tenho mesa posta e alguém me diz uma palavra amiga. esse o prêmio,
a razão e o compromisso.
(NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM)
Jorge Amado
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JORGE AMADO - Quinto ocupante da Cadeira 23 da
ABL, eleito em 6 de abril de 1961, na sucessão de Otávio Mangabeira e recebido
pelo Acadêmico Raimundo Magalhães Júnior em 17 de julho de 1961. Recebeu os
Acadêmicos Adonias Filho e Dias Gomes.
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