Segundo o dicionário Houaiss, efeméride designa,
primordialmente, “a tábua astronômica que registra, em intervalos de tempo
regulares, a posição relativa de um astro”. Na segunda acepção, “fato
importante ou grato ocorrido em determinada data”.
E, na terceira acepção, “comemoração de um fato importante,
de uma data etc.” Muita coisa cabe nesse “etc”, principalmente a jubilosa
celebração de alguma cidade, município ou estado. Mais frequentes, porém, são
as efemérides temáticas: já foram publicadas em livros, entre outras, as
aeronáuticas, as astronômicas, as judiciárias, as navais.
No campo literário, ressalte-se livro de 1997 dedicado a
efemérides da Academia Brasileira de Letras e dois outros similares, das
academias mineira e pernambucana.
Nas sessões acadêmicas rememoram-se vida e obra de um
escritor a partir de um ano chave de sua biografia, em especial se representa
data redonda: cinquentenário de morte, centenário de nascimento. Sendo usual o
recurso a tais datas para evocar os antecessores, seria igualmente possível a
comemoração de uma outra espécie de aniversário, não do criador, mas da
criatura: a obra.
Embora o escritor seja o pai do livro, o livro, de algum
modo, é o pai do escritor, pois este, o autor, só nasce, enquanto tal, em
decorrência daquele, o livro. O cidadão Manuel Bandeira, por exemplo, chegou ao
mundo em 1886, mas o poeta Manuel Bandeira viria à luz apenas em 1917, graças
ao volume “A Cinza das Horas”, que conferiu a ele a certidão de nascimento como
escritor. Autor que, literalmente, brotou da cinza.
O poeta renasceria em livro dois anos depois, com a
publicação de “Carnaval”. Este 2019, portanto, corresponde ao ano do centenário
da obra. Ocasião propícia para redimensioná-la no conjunto da produção poética
do escritor.
Constatamos que seu teor antecipatório do modernismo não se
dá na amplitude que lhe conferiu Mário de Andrade, a ponto de haver cognominado
Manuel Bandeira de “o são João Batista” do movimento.
Com a lucidez que o caracterizava, o poeta pernambucano
declarou que devia muito mais ao modernismo do que o modernismo a ele, e que só
11 anos mais tarde, com “Libertinagem”, de 1930, aderiria inteiramente à
estética de 1922.
Talvez tenha contribuído para o hiperdimensionamento do
papel de Bandeira como vanguardista “avant la lettre” o fato de um poema de
“Carnaval” ter sido lido em São Paulo na Semana de Arte Moderna: o famoso “Os
Sapos”, sátira ao parnasianismo.
Observemos o poema no conjunto do livro. Trata-se do segundo
texto de “Carnaval”, composto de 13 quadras e um terceto. Os 55 versos são
rigorosamente pentassilábicos, e todas as quadras são rimadas no esquema
a-b-a-b. Nada que prenuncie o verso livre —presente, aliás, numa única peça da
coletânea, “Debussy”, em flagrante contraste com os demais 31 poemas,
regularmente rimados, escandidos e metrificados.
Na estrofação, predomínio quase absoluto da quadra, ao lado
de poucas quintilhas e pouquíssimos tercetos. Mesmo “Os Sapos” empreende menos
uma crítica ao parnasianismo como um todo do que a certos tiques e lantejoulas
do estilo. Seria, aliás, contraditório Manuel Bandeira atacar indistintamente o
movimento, pois seu livro contém vários poemas de nítida e bem executada fatura
parnasiana, seja pela forma (versos isométricos, sonetos etc), seja pelo
vocabulário de elevada extração.
Resta examinar a configuração do Carnaval propriamente dito
na obra homônima de Bandeira. Ainda sob esse aspecto, ela muito pouco prefigura
o despojamento vocabular e a extraordinária incorporação das cenas populares do
futuro poeta. Nela desfila, para citar o último verso da coletânea, “o meu
carnaval sem nenhuma alegria”.
Com efeito, em vez do rumor das ruas, haverá, na maioria dos
poemas, a encenação do medieval triângulo pierrô-colombina-arlequim, num
confronto cujo desfecho é pré-conhecido. Leia-se o fúnebre autorretrato de
pierrô: “Atrás de minha fronte esquálida,/ Que em insônias se mortifica,/
Brilha uma como chama pálida/ De pálida, pálida mica...”. Apesar do Carnaval,
não há dança de salão, e, sim, dança da solidão.
Se o derradeiro verso de “Carnaval” confirma a tonalidade
depressiva e melancólica do volume, se o penúltimo poema descreve uma túnica de
pierrô “feita de sonho e de desgraça”, o verso inicial do volume, no entanto,
prometia um roteiro de puro prazer e desregramento: “Quero beber! Cantar
asneiras”.
Como a sequência do livro demonstra, nunca se deve acreditar
rápido demais nos poetas. E, a propósito desse verso, Bandeira, numa entrevista
de 1964, registra, com deliciosa autoironia: “Em ‘Carnaval’ eu dizia: ‘Quero
beber! Cantar asneiras!’. Pois um crítico observou: ‘Conseguiu plenamente o que
queria’”.
O centenário de “Carnaval” nos dá oportunidade de falar
também dos festejos carnavalescos propriamente ditos no ano de 1919. Inexiste
no livro a presença da festa popular, salvo no poema “Sonho de uma Terça-feira
Gorda”. Mas a folia carioca de então guardou uma peculiaridade que a tornou, de
certo modo, inesquecível: aquele carnaval ficou conhecido como “o da gripe
espanhola”, quando os habitantes do Rio, pela via dionisíaca, exorcizaram a
sombra da morte que descera sobre a cidade pouco tempo antes.
No artigo “O Carnaval da Gripe Espanhola”, o historiador
Ricardo Augusto dos Santos informa que a gripe aqui desembarcou em setembro de
1918, tendo efeito catastrófico. Num Rio de Janeiro de cerca de 1 milhão de
habitantes, estima-se que 600 mil contraíram o vírus e 15 mil morreram.
Comércio, indústria e serviços públicos foram afetados, nos casos em que não
tiveram paralisadas por completo suas atividades.
Abandonaram-se os cadáveres, na falta de coveiros para
enterrá-los. Mas, conforme poderia ter escrito Machado de Assis, a gripe entrou
à socapa e saiu à sorrelfa, pois desapareceu em novembro, depois de dois meses
devastadores.
Para comemorar simbolicamente a vitória contra a doença, a gripe
espanhola foi logo cantada nas ruas, tornando-se tema de marchinhas
carnavalescas, como: “Não há tristeza que possa/ Suportar tanta alegria./ Quem
não morreu da espanhola,/ Quem dela pôde escapar/ Não dá mais tratos à
bola/ Toca a rir, toca a brincar...”.
Houve, porém, algo mais apimentado no Carnaval de 1919, a
ponto de, décadas depois, três grandes cronistas a ele retornarem.
Ruy Castro: “Quem não morreu sentiu-se no dever de celebrar
a vida, brincando o Carnaval como nunca antes. A cidade saiu em peso para os
corsos, ranchos e batalhas de confete. Os pierrôs e caveiras não se contentavam
em pular —invadiam as casas e arrastavam os renitentes para a folia. Pela
primeira vez, o samba superou os outros ritmos nas ruas. E, numa dessas, o
menino Nelson [Rodrigues] viu, dançando no alto de um carro, na praça Saenz
Peña, uma moça fantasiada de odalisca, com o umbigo à mostra. Ninguém de sua
família tinha umbigo —ele próprio só agora descobria o seu”.
Carlos Heitor Cony: “No Rio, o sujeito ia atravessar a rua,
botava o pé no meio-fio com plena saúde e chegava morto ao meio-fio do outro
lado. Era fulminante a gripe, os parentes deixavam os mortos nos bondes,
pagavam a passagem deles, como se passageiros fossem. Não havia tempo nem lugar
para o enterro. Natural que, depois da fase mortuária, viesse a fase
libertária, ou libertina, basta dizer que as delegacias da cidade registraram a
queixa de 4.315 defloramentos e outros tantos casos de abandono do lar,
adultério e até incesto. E assim é que o Carnaval de 1919 permanece inédito, à
espera que algum desocupado encare a época, o Rio da gripe e de depois da
gripe, o Rio cuja violência explodiu no sexo de um Carnaval como nunca houve
nem haveria igual. A ideia [...] era pegar como narrador um personagem
nascido nove meses depois, um filho dessa esbórnia, desse pânico pela morte que
estourou donzelas e famílias. Os brasileiros nascidos na feliz data de novembro
de 1919 que se habilitem”.
Nelson Rodrigues: “Estou aqui reunindo as minhas lembranças.
Aquele Carnaval foi, também, e sobretudo, uma vingança dos mortos mal vestidos,
mal chorados e, por fim, mal enterrados. Ora, um defunto que não teve o seu bom
terno, a sua boa camisa, a sua boa gravata é mais cruel e mais ressentido do
que um Nero ultrajado. E o Zé de S. Januário está me dizendo que enterrou
sujeitos em ceroulas, e outros nus como santos. A morte vingou-se, repito, no
Carnaval... E tudo explodiu no sábado de Carnaval. Vejam bem: até sexta-feira,
isto aqui era o Rio de Machado de Assis; e, na manhã seguinte, virou o Rio de
Benjamim Costallat [...] Desde as primeiras horas de sábado, houve uma
obscenidade súbita, nunca vista, e que contaminou toda a cidade. Eram os mortos
da espanhola e tão humilhados e tão ofendidos que cavalgavam os telhados, os
muros, as famílias... Nada mais arcaico do que o pudor da véspera. Mocinhas,
rapazes, senhoras, velhos cantavam uma modinha tremenda. Eis alguns versos: ‘Na
minha casa não se racha lenha,/ Na minha racha, na minha racha./ Na minha casa
não há falta d’água,/ Na minha abunda, na minha abunda’”.
Regressemos agora ao dicionário Houaiss, que deixamos aberto
na página do vocábulo efeméride. Ele se localiza imediatamente após um outro
que é o seu oposto, como se o veneno da fugacidade estivesse à espreita para
inocular-se em tudo que se deseja eterno. Sim, porque a palavra que
dicionariamente antecede efeméride é efemeridade. O efêmero é o reino daquilo
que só dura um dia, numa negação do resgate que a efeméride intenta
efetuar.
Diversamente dos dois carnavais aqui referidos, o literário
e o literal, que perduram na memória de nossa cultura, quantos milhares de
livros e milhares de festas de 1919 extinguiram-se na modesta condição de terem
sido somente efêmeros?
Talvez valesse a pena considerar que, na sábia lição
oferecida pelo dicionário, é de apenas um passo, ou um verbete, a distância
entre a pretensão da eternidade e a realidade do esquecimento.
Folha de S. Paulo, 22/06/2019
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Antonio
Carlos Secchin - Sétimo ocupante da Cadeira nº 19 da ABL, eleito em 3 de
junho de 2004, na sucessão de Marcos Almir Madeira e recebido em 6 de agosto de
2004 pelo acadêmico Ivan Junqueira.
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