11 de maio de 2019
Nelson R. Fragelli
No tempo longínquo em que a reforma litúrgica imposta pelo Concílio Vaticano II encontrava adeptos ardentes, a celebração da Missa foi adquirindo um tom festivo, com canções novas e sermões otimistas exibidos em meio a representações cênicas deploráveis. Tudo sob medida para a Missa perder seu conteúdo de mistério.
Com um grupo de amigos da TFP francesa, íamos à Missa dominical
em Notre Dame de Paris. Um velho cônego da Catedral, hostil à reforma
pós-conciliar, celebrava a Missa de acordo com Ordo tradicio0al, que São Pio V
estabelecera durante o Concílio de Trento, como forma de combate ao laicismo
protestante. Disposições pós-conciliares relegaram o Ordo de São Pio V à
categoria de cerimônia apenas tolerada, e a nossa Missa em Notre Dame tinha que
ser celebrada às oito horas da manhã, “escondida” num altar lateral. Nessa hora
quase não havia frequentadores ou visitantes da catedral, mas o que certos
hierarcas temiam era a força da tradição.
Ambiente de grandeza e mistério
Durante o inverno, a catedral fechada, ainda envolvida nas
últimas sombras do alvorecer, parecia repousar. Tão imponente e majestosa, que
preferíamos manter-nos em silêncio, mesmo estando do lado de fora, enquanto
junto a ela aguardávamos que se abrissem as portas. Pontualmente às oito horas,
dentro do santuário velhas aldravas e fechaduras rangiam, e o grande portal
estremecia ao abrir-se apenas uma passagem de pequenas dimensões, existente na
sua parte inferior.
Ao entrar, nossa primeira impressão agradável era sermos
recebidos por uma espécie de “hálito da catedral”. Era o alento dos séculos, no
qual se juntam o odor do incenso, a umidade das pedras, a fragrância de flores
ressequidas, emanações enigmáticas de idades imemoriais. Odores da continuidade
numa possante tradição, característicos dos edifícios seculares.
Ainda na obscuridade, a catedral nos apresentava então as
suas vastidões e o seu silêncio. Uma floresta bem ordenada de colunas, traves e
nervuras, onde nada se movia. Na imensidão do templo imerso em denso silêncio,
presenças invisíveis se impunham aos sentidos, como a de anjos que habitam
espaços sagrados. A amplitude das naves e a altura dos arcos góticos se
dilatavam aos nossos olhos, pasmados ao perscrutarem as altas ogivas de um
extremo a outro de sua extensão. A sacralidade daqueles espaços benditos nos
atraía, tornando lento nosso caminhar para o altar distante onde nosso
venerável Cônego celebraria. Grandeza e mistério envolviam os sentidos, criando
um instante passageiro no qual a eternidade se fazia sentir.
Guerras e a inclemência dos tempos tinham destruído os
vitrais junto à entrada. Substituídos por outros — monocromáticos, de tom
esverdeado, inexpressivos — não tinham o esplendor dos painéis originais, cujas
imagens narravam histórias santas em cores feéricas. Mas durante a Missa eu
podia contemplar minúcias de grandezas: figuras da Natividade de Cristo, cujas
faces de comoventes canduras se apresentavam como recém-saídas da mão do
Criador; simples traços fisionômicos de personalidades acessíveis, revelando
intenções firmes e fortes; figuras artísticas próprias à elevação e
contemplação do mistério. A criatividade dos artistas e artesãos pôs naquelas
feições disposições sobrenaturais, nas quais transluz a alma medieval. A
penumbra da manhã encobria detalhes das imagens, mas nada tirava da beleza. A
imaginação completava o que os olhos não discerniam, acrescentando-lhe traços
sugeridos pela cândida inocência dos tempos idos e passados.
Ao fim da Missa, já o sol começava a acender os vitrais.
Primeiramente os da abside voltada para o Levante, de onde veio a Luz do mundo,
nosso Salvador. As cores são particularmente puras, pois vêm da Idade Média. No
interior do templo, sobre quem os contempla, eles vertem luz, cores e
prodígios. Mas na saída, ao contemplar a luz esverdeada dos vitrais
monocromáticos, pensávamos numa “catedral submersa”, repousando no fundo de um
oceano, à espera da fé de um povo que a resgatasse e a trouxesse à tona. E assim
deixávamos Notre Dame e sua ternura materna, após a Missa tradicional dos
domingos.
Fisionomias humanizadas
Do lado de fora, dávamos um último olhar à terna grandeza da
catedral.
Olhando-a de longe, ela parece dominadora, a ponto de a
cidade em torno desaparecer da atenção, obnubilada por sua grandeza. A fachada
evoca uma fortaleza, onde as torres sobressaem como maciços torreões
acastelados por contrafortes. São torres vigiando o mundo que se move a seus
pés, e exprimem os olhos de Deus que tudo vê. Nelas se juntam à sua seriedade a
Lei e os Profetas, evocando o Antigo e o Novo Testamento, ambos representados
em esculturas da fachada.
Outras vezes, contemplando-a de longe, suas pedras
adquirem cor mais clara, em alguns períodos do dia ficam mais rosadas. Sua
acolhedora fisionomia ilude então nosso senso de observador, fazendo-a parecer
pequena como a catedral de uma aldeia em miniatura, e a fachada parece procurar
seus amigos com terno olhar, a todos ela parece ver. Mostrando-se meiga, a
catedral desperta nos filhos de Deus a vontade de aproximar-se. Sua majestade
nada tem de esmagador.
Entre as duas torres, a Mãe de Misericórdia tem seu Filho
nos braços, abrandando todo rigor que os portentosos campanários tão
oportunamente inspiram. Se a inflexibilidade das torres propõe um exame de
consciência, junto a elas a rosácea central emoldura a imagem de Nossa Senhora,
como um sorriso de perdão dado ao arrependimento. Maria nos diz que a
severidade das torres se relaciona com os inimigos da Igreja, com os impenitentes
e com o que pode haver de impenitência na alma de cada um. Mas Ela socorre os
que a procuram com coração contrito.
Notre Dame nos observa e nos convida, exprime-se como uma
fisionomia humana. Suavemente penetra nas almas, chamando-as à Religião. Esse
chamado é como um sopro divino que abala o materialismo infiltrado nas almas,
restaurando partes arruinadas pelos erros deste século. Quem a visita, nunca
mais a esquece, fica na memória como o lugar deste mundo no qual as almas
encontram refrigério. E retorna à lembrança, da mesma forma que a luz volta a
iluminar seus vitrais, passada a escuridão da noite. Seu consolo se aloja na
recordação indelevelmente. Não será esta sutil impressão um dos dons de Notre
Dame, que atrai tantos visitantes?
O afeto filial torna mesmo imaginável tomá-la nos braços.
Nisso ela se parece com a imagem central de sua fachada, representando Nossa
Senhora com seu Divino Filho no colo. Transparece através de suas linhas e de
seus adornos arquitetônicos o semblante da filha de São Joaquim e Sant’Ana —
Notre Dame, ou Nossa Senhora — sendo apresentada no Templo de Jerusalém.
Um fogo que ilumina
O fogo acaba de consumir uma parte significativa de Notre
Dame. Estarrecidos, vimos a catástrofe que absolutamente não podia ocorrer:
chamas vorazes, como que vindas do inferno, calcinavam aquele lugar celestial,
trazendo à memória Santa Joana d’Arc, inocente e virginal, condenada ao
suplício do fogo. Naquele instante — Joana d’Arc em sua agonia atroz, e a
catedral em meio às chamas — davam de si uma figura mais santa do que nunca.
Cresceram ambas na consideração de todos os homens. Sua beleza adquiriu assim
um novo esplendor, iluminado pelas chamas do sacrifício. Assim é a beleza do
martírio.
Cessado o fogo, as imagens de seu interior impiedosamente
calcinado causam profunda dor. As cinzas do santuário baixam sobre nossos
corações em luto. Mas se ela devesse um dia desaparecer, formaria na mente dos
que a veneram uma figura mais bela ainda do que ela tem sido durante os quase
nove séculos de sua esplendorosa existência. Notre Dame não desaparecerá, mas
também não é admissível restaurá-la com outra fisionomia.
Um povo em luto
No dia seguinte ao incêndio, acerquei-me da catedral.
Temeroso de vê-la em meio à desolação das cinzas, assim mesmo fui. Grande
número de pessoas em torno dela, tanto quanto era possível, pois um cinturão de
segurança a rodeava. Em pequenos e silenciosos agrupamentos, falava-se pouco e
em voz baixa, nas mais diversas línguas. Católicos ou não, todas as faces
mostravam consternação, olhares pesarosos como se tivessem perdido um familiar
querido. O sentimento de orfandade vagueava entre todos, mesmo nos que não
tinham explicitamente tomado Nossa Senhora por mãe. Grupos de jovens rezavam o
Rosário, ajoelhados e contritos.
Esbarrei casualmente com a proprietária da lavanderia que me
atende. Preocupada sempre com o esmero de seus trajes, a ostentação de seus
enfeites e sua inserção no mundo, nunca pensei encontrá-la ali, onde não havia
ambiente para futilidades. Cumprimentei-a passageiramente, quase sem fixá-la,
mas ela me reteve. Notei então, pela primeira vez, traços de seriedade sob sua
densa maquiagem: “Não pude conter as lágrimas, ao ver a transmissão ao vivo de
Notre Dame em chamas”. Nunca imaginei que, sobre tantas camadas de cosméticos,
algum dia pudessem correr lágrimas.
Havia nas pessoas, em particular nos jovens, um sentimento
raro nos dias de hoje: a dor causada por uma razão elevada. Não era o
sentimento pela perda do emprego ou pela derrota de seu time. Notre Dame
sofrera essa tragédia no primeiro dia da Semana Santa, cujas cerimônias
recordam o Sacrifício de Nosso Senhor Jesus Cristo na Cruz. Numa dessas
cerimônias recitam-se as Lamentações de Jeremias, sobre a desolação de
Jerusalém castigada por Deus. Substituindo mentalmente a cidade de Jerusalém
pela catedral de Notre Dame, podemos sentir ali “como está abandonada a
cidade antes tão povoada! Aquela que foi grande entre todas as nações
assemelha-se a uma viúva. […] Estão de luto os caminhos de Sião, e ninguém mais
vem às suas festas”.
Aqueles jovens que rezam e o público lacrimoso encontrariam
em Jeremias os termos consonantes com esta hora de dor.
NOTRE DAME DE PARIS EM CHAMAS
Comunicado da Sociedade Francesa de Defesa da Tradição,
Família e Propriedade
Foi com horror e uma tristeza indizível que o mundo inteiro
viu a Catedral de Notre Dame de Paris, joia da Cristandade, devorada pelas
chamas, num momento em que uma vaga de profanações vandaliza os santuários
franceses. No dia exato em que começava a Semana Santa, Notre Dame de Paris
transformou-se em Nossa Senhora das Dores.
A coragem dos bombeiros permitiu salvar as torres e paredes,
mas a flecha que apontava para o céu desabou dramaticamente. Como não ver nessa
tragédia o símbolo do mal que corrói a França, outrora a pérola do mundo
cristão? Um incêndio de impiedade devora o país, alimentado pela obsessão
igualitária destruidora de tudo o que, por sua verticalidade, lembra o rumo do
Céu.
Esse fogo propriamente infernal ergue-se por vezes,
infelizmente, no próprio interior da Igreja, criando a ilusão de que ela vai
desabar. Fluctuat nec mergitur (fustigada pelas ondas, ela não
soçobra). Esta divisa da cidade de Paris aplica-se também com acerto à Roma
eterna.
Por isso mesmo as ruínas de Notre-Dame não devem levar os
católicos ao desespero. Ao contrário, assim como elas atraíram os fiéis,
durante o incêndio, a se reunirem em massa para rezar nas margens do Sena,
devem ser ocasião para nos voltarmos para Nossa Senhora e pedir forças para
extinguir o mal que consome a França.
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O original deste comunicado da TFP francesa encontra-se disponível no site da entidade: http://tfp-france.org/notre-dame-de-paris-en-flammes/
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Comentário
12 de maio de 2019
Ótimo artigo com belos comentários sobre a catedral de Notre
Dame e a tragédia
do incêndio por que passou com altas considerações e com muito pé na realidade linguagem acessível para todos entenderem e que acaba exprimindo o que cada um que lê sente embora não tenham palavras para explicar tudo.
do incêndio por que passou com altas considerações e com muito pé na realidade linguagem acessível para todos entenderem e que acaba exprimindo o que cada um que lê sente embora não tenham palavras para explicar tudo.
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