Queima do Judas na Rua do Quartel Velho
Cyro de
Mattos*
O sábado era o dia em que mais gostava na Semana Santa.
Amanhecia alegre porque Jesus Cristo ressuscitava nesse dia. Já podia cantar
marchinhas no banheiro lá em casa quando fosse escovar os dentes e tomar banho.
Já podia beber leite no café da manhã e comer carne de gado, porco, carneiro ou
galinha na refeição do almoço. Podia jogar bola no campinho da beira-rio,
pescar, nadar e mergulhar no rio Cachoeira. Se quisesse, podia ir assistir ao
último episódio do seriado de Flash Gordon na matinê do Cine Itabuna.
A cidade voltava a ter sua vida normal, os comerciantes
abriam as portas de suas lojas, as pessoas caminhavam na rua, ora apressadas,
ora tranquilas. A feira atrás da estação do trem voltava a fazer sua festa, com
vozes que não paravam de falar, as pessoas comprando tudo que podia se
imaginar. O padre Nestor celebrava a missa das sete com entusiasmo na igreja de
Santo Antônio cheia de fiéis. Depois que dava a bênção final, bradava que
Cristo estava vivo, era o verdadeiro e único rei dos cristãos, reinou e sempre
haveria de reinar, ressuscitava para o bem da vida, aleluia!
A queima do Judas acontecia nos bairros populares. Para
minha alegria e surpresa, dessa vez o Judas ia ser queimado lá na rua do
Quartel Velho. Quem preparou o boneco de palha, cheio de bombas na cabeça,
tronco e membros, foi seu Filó, o dono da casa que vendia ferro e alumínio na
rua do comércio. À noite, por volta das
19 horas, já havia muita gente diante do Judas pendurado no poste.
Seu Filó começou a ler o testamento do Judas por volta das
20 horas.
A cabeça vai pra seu Ribeiro,
A dele nunca prestou mesmo,
A do burro vale mais dinheiro.
As mãos espertas e macias
Dou pro açougueiro Berilo
Roubar melhor no quilo,
Cada nádega é pra seu Augusto
Comer gostoso e soltar arroto,
As pernas finas e compridas
Deixo pro João Monteiro
Andar pra frente e ligeiro,
O chapéu grande de palha
É pro prefeito usar sem as galhas,
A calça velha, a camisa rasgada,
O paletó com a gravata preta
Vão vestir o Zeca Hemetério
Quando viajar pro cemitério,
Os sapatos furados sem cadarço
Dou pra Luís Bernardo calçar
Quando tiver são ou bêbado,
É da meninada minha barriga
Cheia de doces e lombriga,
O charutão é de seu Tonico,
Bom proveito quando for ao circo,
O dinheiro vai pro seu Aleixo
Gastar no jogo do bicho,
O par de meias com chulé
É pro padre Nestor fazer rapé,
O que precisa Maria Padeira
É um bocado de pele grossa
Pra ela fazer uma peneira,
Já uma parte da peitaça
É pra Dona Maria Graça,
Se ainda sobrar algum osso
É pra dona Joanísia botar
Na sopa de seu Lindolfo.
Começava a ser queimado pelos pés, aí o que se ouvia eram os
estouros de cada bomba arrancando os pedaços do traidor de Jesus Cristo. Eram
lançados para todos os lados. Os estouros das bombas misturavam-se com
gaiatices, sorrisos, gritaria de gente grande e pequena.
Alguns dos moradores da rua achavam graça quando tomavam
conhecimento de que tinham figurado como herdeiros no testamento do Judas.
Outros ficavam aborrecidos, evitando se encontrar com seu Filó na rua, durante
algumas semanas. Seu Ribeiro, o agente dos correios, exigiu que ele lhe pedisse
desculpa, se ainda quisesse tê-lo como amigo e bom vizinho. O prefeito Nazário
pensou até em processar seu Filó, velho companheiro de partido. Achava que sua
fiel esposa Maria Santinha não merecia ser ofendida por tão grande mentira,
mesmo que se tratasse de uma brincadeira inventada por seu Filó no testamento
de Judas. Não levou a ideia adiante porque as eleições municipais iam ocorrer
naquele ano. Queria ser reeleito como prefeito. E ele bem sabia que seu Filó
era o seu melhor cabo eleitoral na cidade.
*Cyro de Mattos é autor de 60 livros,
de diversos gêneros. É também editado no exterior. Premiado no Brasil,
Portugal, Itália e México.
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