O moço morava no outro lado do rio. Lá havia uma olaria.
Trabalhava ali, fazia moringa, panela, bonecos e santos. Mãos caprichosas,
artesão afamado. A moça morava no lado de cá, margem esquerda do rio, onde
havia a pequena cidade com o seu comércio próspero. Fazia toalha, tapete, rede.
As mãos delicadas, tecelã admirada.
Em cada domingo, empreendia o caminho das águas. Na canoa
remava. Sentia-se bem com a manhã clara, a aflorar sentimentos de ternura, a
cada lance que remava. ”Rema, rema, remador, se queres ver o teu amor”.
Manejava o remo com serenidade, a canoa singrava no espelho
das águas. Prosseguia na manhã sem nuvens, o moço concentrado em cada remada
que dava, a canoa como uma folha deslizando nas águas claras, de fontes
puríssimas. “Se a canoa não virar, devagar chegarás lá, o teu amor vais
encontrar.”
O casamento foi marcado para maio, mês de nascimento do moço
artesão e da moça tecelã. Era para acontecer num desses domingos de sol
radiante. Na igrejinha de paredes alvas, erguida na colina, no pátio enfeitada
de bandeirolas. Lá dentro os vasos com cravos e rosas, os ares ativados com o
perfume das flores. O sino velho na torre saudaria os noivos, as batidas
fazendo blem, blem, blem, alegrando a cidadezinha na manhã luminosa.
Vontade de chegar depressa, abreviar o caminho das águas.
Bater à porta da casa onde a moça o esperava desde cedo, o coração temeroso, o
rosto de ânsia. A canoa impelida pelo remo em lances cadenciados. O vento, a
princípio manso, de repente assoviou forte, no peito do moço bateu enraivado.
Mostrava que também estava enamorado da moça. Vento virado em bicho ciumento,
danado, como se quisesse derrubar nas águas o moço, impedindo-o de se encontrar
com a moça. Bateu mais forte na canoa, que bateu na pedra, virou de lado,
encheu de água. Desceu para o fundo do poço.
Nadou com firmes braçadas. Para se encher de ânimo, o moço
dizia para si, entre os redemoinhos da alma. “Nada, nada, nadador, se queres
ver o teu amor.” Até que pisou em terra firme. Estava cansado, o peito arfava.
Colheu flores silvestres no barranco, antes de prosseguir na jornada.
Já desanimada, a moça não mais esperava que ele aparecesse.
Ouviu alguém bater palmas lá fora. “Tem alguém aí em casa?” Apressada foi abrir
a porta. Queria saber de quem eram as palmas fortes. Assustada, viu o moço que
aparecia risonho, um rosto de expressão vitoriosa.
Entregou à moça o buquê de flores. Pediu uma xícara de café
quente. Sentou na cadeira da sala, vestido com outras roupas, limpas e
engomadas, que a própria moça providenciara. Depois de aquecer o peito com o
café, bebido aos poucos, começou a contar por que se atrasara. O vento cheio de
ciúme bateu na canoa com uma rajada medonha, suficiente para fazer um rombo na
popa. A canoa afundou. Para não esmorecer na travessia, fortaleceu a vontade
com uma coragem impressionante. Impeliu-se em arrojadas braçadas. Nada o
atemorizava. Nem o poço fundo, a correnteza poderosa, o vento incontrolável,
que enciumado assoviava na manhã tormentosa.
Durante a difícil travessia, só queria que chegasse aquela
hora para dizer à moça o que sempre desejara:
- Estou esperando na igrejinha para receber você como a
minha esposa.
Como havia prometido, desde aquele dia em que o artesão
afamado deu o seu primeiro beijo na tecelã amada.
* Cyro de Mattos é escritor e poeta. Doutor Honoris Causa da
Universidade Estadual de Santa Cruz. Possui prêmios literários expressivos no
Brasil e exterior. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia.
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