Nessa hora de crises e questões, a poesia entra em cena com
seus modos, que são versos e motivações, buscas num obstinado empenho de
totalidade, visão individual na exposição de alforrias, que circulam em seu
íntimo, tocam os acordes já uma vez entoados, recriados, como os cria também no
leitor.
Um poema lírico é
eficiente quando se pensa na sensação, palavras e versos como meios
surpreendentes de seus motivos crivados de falas. É belo quando a verdadeira
força e valor estão na situação de seus motivos. Quando é pobre na motivação, deixa de operar a
sua presença com eficácia perante a existência. E, sensações estranhas no
ritmo, versos inócuos na ideia, o que seria inspiração e transpiração perde-se no vazio, na incapacidade de
transmitir algo sério, alcançar um grau eficaz na dicção particular em que se
expressa.
O estético
nesse caso sem resultado positivo, graças ao efeito ineficiente do pensamento
verbal, dissociado do conteúdo rico de significados, não se faz bom nem belo,
eis que se apresenta destituído de um discurso pulsante de vida, prazer e
dores. Destituído de densidade na palavra, frágil assim para refletir a vida,
dispensa compreensão e fruição da mensagem, pois nele não se consegue perceber
o relacionamento contraditório dos seres e as coisas. É o que costuma
empreender o texto em prosa ou verso decorrente de uma estrutura frágil de
expressão e conteúdo.
A metáfora
fecundada de alusões apropriadas insinua a possibilidade de uma compreensão
lógica e sentimental da vida, crispada na face multifacetada de dores e
falhas. Parece que tudo isso trabalhado
com equilíbrio, a nível de engenho e arte, ressoa em Alforrias com a
consciência dos sentimentos, intuições e razões que se prestam à perspicácia da
alma, à liberação de um lirismo que corresponde a certas inclemências, paixões
com a solitude do vento, invasões com as tormentas e os abortos clandestinos.
O lirismo em que se
refere a poeta para transmitir cometimentos, estruturados em estados de desejo
incompleto, resulta da necessidade categórica própria dessas alforrias, que
querem ser percebidas num mundo-mar de vastidões e até mesmo na forja das ilhas
onde cavam suas profundidades. Seu discurso contundente em que dolorosa é a
mensagem não esconde a intenção do eu e tu como vínculo de gravidade. De suas
colisões constam adultério, torpezas e
vilania, sempre no ser-estar crítico o drama, disposto a revelar-se sem concessões
do verso doce, frágil e pueril, mas sempre desdobrado em poesia secreta e
prosadura.
Essas alforrias de Rita Santana, tecidas na tristeza da alma
e nas acusações eróticas do amor, distribuem-se com a temática afrodescendente,
da condição da mulher frente ao homem e na versão carnal que os une e
desune. Percepção do que a vida oferece
em situações do desamor está no poema Mortes Cotidianas.
Chove na promessa remissa do feriado
E a migração não cessa.
Entristeci há dias
E o espelho, somente ele,
Revelou o embranquecer dos pelos,
O cansaço da voz,
E a desidratação da esperança.
Chove nos confins da minha alegria.
Virei moça triste sem vontade de sorrir.
Não tenho nada!
E nada resta do ser, senão, securas.
Artroses na atriz, reumatismos no feminino
E uma alergia de afetos.
Há anos não gozo, por puro desgosto!
Há anos não canto, por puro desencanto!
Há anos não vivo, só tenho banzo!
Por pura preguiça
De subir tantas ladeiras,
E descer tanto Morro,
Morro, morro, morro, morro...
Como observa Maria de Fátima Maia Ribeiro, na orelha desse
pequeno grande livro de poemas instigantes, o lirismo atual desse poeta
“definitivamente descarta a necessidade de espera de tempo e serenidade, em
favor do encantamento, da exacerbação e do reencontro com camadas tantas vezes
adormecidas.”
A ilheense Rita Santana é atriz, professora graduada em
Letras pela Federação de Escolas de Ensino Superior de Ilhéus e Itabuna. Mulher
que se inventa em versos e na prosa de ficção curta. Além de Alforrias, publicou Tramela (2004),
contos, vencedor do Prêmio Brasken de Cultura e Arte, e Tratado das Veias
(2006), poesia. Um talento dos melhores que aconteceu nos últimos anos nas
letras contemporâneas da Bahia.
Referência
SANTANA, Rita. Alforrias, Editus (Uesc), Ilhéus, Bahia,
2016.
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Cyro de Mattos é escritor de crônicas, contos, romance,
poesia e literatura infantojuvenil. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e
México. Também publicado por editoras da Europa. Da Academia de Letras da
Bahia. Doutor Honoris Causa da universidade Estadual de Santa Cruz.
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