Cheguei à
casa de seu Raimundo numa manhã ensolarada; a residência dele fica no topo de
uma ladeira disfarçada e em frente estende-se uma paisagem que é uma beleza,
confrontada com o sair do sol; embaixo, junto à cerca que faz divisória com os
cacauais, há uma represa ampla entre arbustos e flores silvestres. Ele, de fala
mansa, recebeu-me com olhar tranquilo, sorriso leve; sua calma era de espantar,
como se minha presença não fosse, assim, nenhuma novidade.
Calculei,
havia quase 15 anos encontrava-me ausente, distante, andando por este mundo de
meu Deus; e ele, agora, somente com a mulher e o filho mais velho. Seu Raimundo
nunca deixou a fazenda aonde chegou menino, cresceu, casou-se e, certamente,
morrerá, a não ser para assistir missa vez em quando e fazer “fecha” de cacau
na cidade. Os outros filhos dele andam espalhados, o mais novo formou-se em
medicina e reside em Salvador; a filha casou-se com um paulista e pouco vem à
Bahia; outro se meteu com pecuária para as bandas de Minas Gerais, aparece vez
em quando.
Mudanças pessoais
em seu Raimundo, quase nenhuma; ainda usa chinelos de couro, cabelo desarrumado
caindo sobre a testa um pouco mais ampla; camisão de mangas compridas e óculos de
tartaruga num bolso debrunhado, misturados com palhas de milho para cigarro e
um canivete antigo; bigode com fios embranquecidos.
Numa parede
da sala, cabide de madeira escura com roupas de campo penduradas, um chapéu de
baeta de aba quebrada na frente; embaixo do cabide, umas botinas amarelas com
manchas escuras. Dona Antonieta, mulher dele, não se esqueceu das saias rodadas
de cós franzido, cabelo liso amarrado em popa, com uma passadeira de metal. Lembrei-me
das feijoadas, dos bolos de aipim, do café torrado na hora: “é donzelo, tome
logo”, ela dizia passando-me a xícara fumegando. “E o cafezinho, dona
Antonieta, nunca me esqueci”. Ela sorriu entrando para a cozinha, “vou fazer um
agora mesmo”. Dona Antonieta está meio-envelhecida, mais gorda ou mais magra,
andar preparando-se para ficar lento, os olhos mostrando alguma perda do
fulgurante. “Ah, meu filho, tempo bom era aquele!”
A paisagem
verde da fazenda, a curvatura do céu dimensionada com o tamanho do lugar,
traziam-me recordações das festas de São João com fogueiras de tronco de jequitibá
incendiando; fogos de artifício iluminando as capoeiras; churrasco, milho verde
assado, canjica, caças, pescaria.
Seu Raimundo, forte naquele tempo, era
fogoso para tudo isso. Bom no tiro, não perdia uma paca, uma perdiz. Nas festas,
todo animado de botinas lustrosas e gravata, forrozava com dona Antonieta, com
a filha, com as moças da redondeza. Minha presença eu sua casa era uma constância ; dava-me bem
com toda a família, notadamente com Juanita que casou com o paulista, e com
Emanuel que formou-se em medicina.
À direita
da casa existe ainda o curral pequeno, agora meio desmantelado, com um mourão
no meio, apodrecendo. Lembrei-me do garrote caramuru, de mamilo grande pendido
para um lado; da vaca Suana que dava dez litros de leite por dia. Em frente à
casa, no terreiro, existe ainda o tamarindeiro, agora menos frondoso, a crosta
rachada; embaixo dele, num desafio, o banco todo de madeira fincado no chão
limpo entremeado de folhas secas, onde os moradores iam à tardinha para
conversas íntimas; vacas leiteiras pastavam vigiadas pelo garrote mugindo e
cheirando o vento, de focinho para cima. Nas noites de estio e de luar,
encontros para uma prosa, contar estórias, fazer serenata.
Almocei com
seu Raimundo e passamos a tarde conversando sobre cacau, chuva, estiagem,
pragas e outros assuntos interessantes para gente do campo. Ele me deu notícia
de todos seus familiares distantes. Nosso diálogo, a momentos, desvanecia. A boquinha
da noite vinha caindo quando nos despedimos. A represa em frente, como um
painel cinza-escuro, formava uma mancha
no meio do gramado verdejante.
Deixei seu
Raimundo em pé, encostado ao gradil da varanda, enrolando um cigarro de palha.
(LINHAS INTERCALADAS – 2ª Edição 2004)
Ariston Caldas
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Ariston Caldas nasceu em Inhambupe, norte da
Bahia, em 15 de dezembro de 1923. Ainda menino, veio para o Sul do
estado, primeiro Uruçuca, depois Itabuna. Em 1970 se mudou para Salvador onde
residiu por 12 anos. Jornalista de profissão, Ariston trabalhou nos
jornais A Tarde, Tribuna da Bahia e Jornal da Bahia e fundou o
periódico Terra Nossa, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do
Estado da Bahia; em Itabuna foi redator da Folha do Cacau, Tribuna do
Cacau, Diário de Itabuna, dentre outros. Foi também diretor da Rádio
Jornal.
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