Fim de Carreira do Goleador
Cyro de Mattos
Se pudesse voltar no tempo, nada melhor poderia acontecer
para ele nesse mundo. Gostaria de ver aquele gol de
calcanhar no primeiro campeonato conquistado pelo Grêmio.
Andava desligado do trabalho na carpintaria. Não entregava as encomendas aos
fregueses no tempo prometido. Triste agora pela casa.
Desde que deixou de ser aquele centroavante inteligente, que fazia gols com um
toque de classe, a torcida levantava e aplaudia de pé.
Visivelmente se via no rosto que não estava de bem com a vida.
Irritava-se com qualquer coisa
insignificante que acontecesse em casa. A comida, que a
mulher preparava com arte e
bom-gosto, sempre elogiada por ele, não produzia mais aquela
sensação que molhava de prazer o coração. Os olhos vermelhos como se
tivesse chorado escondido no quartinho dos fundos. Deixara de ser o
marido carinhoso, o pai paciente com os filhos, o vizinho admirado
por seus préstimos na hora necessária.
Ensimesmado evitava falar com os de casa. Sentava na cadeira
de vime e ficava na sala com os olhos fixados nas fotos dos times de
futebol, o quadro pendurado na parede com a tinta desbotada, a
mancha da umidade em cada canto. Lá estava a famosa
esquadra da Associação, que deu jogadores para os times do Rio, São Paulo, Belo
Horizonte e Bahia, como naquele tempo era chamado Salvador.
Estreara no Campo da Desportiva como centroavante, num
domingo de sol, no clássico dos clássicos local, Janízaros contra a
Associação.
Quase um menino, que não ficava parado, nem temia o
zagueiro alto e corpulento. Mexia-se pelos dois lados, fazia
bem o pivô e deixava o zagueiro preso no lance. Mostrou logo que
era um centroavante inteligente, que veio para ficar entre os
bons goleadores do campeonato da Liga. Formou ao lado de Juca, o
professor, uma dupla de atacantes que se tornou
célebre pelas tabelinhas que fazia com facilidade.
Fez gols espetaculares, que deixavam o
torcedor pasmo, tirando-o do sério. Gol sem ângulo, de
lençol no zagueiro, por entre as pernas do goleiro. Nesse
tempo aprendeu muito com Juca, que certa vez
lhe disse, bater na bola era questão de
jeito. O atacante devia estar sempre no momento certo
dentro da área, receber a bola, não se
afobar, fazer o gol como se estivesse fazendo uma obra de
arte. Não era por acaso que Juca era chamado de professor,
maestro, mago, milagreiro, usava bem o pé
esquerdo e o direito, dominando e batendo na bola com inteligência e precisão.
Era também bom no cabeceio.
Fixava o olhar no retrato com o esquadrão do São
Cristóvão, o time dos motoristas. Lá estavam Mudo, Almir
e Mala, este em fim de carreira. Era um franzino
atacante, de pernas compridas, parecia lento, mas aparecia na
grande área quando menos se esperava. Desviava-se do marcador com
um drible seco e entregava a bola a ele para fazer o gol.
Fez uma dupla de atacante inesquecível com Mala quando então se
firmara como um goleador implacável no cabeceio. Mala observava que
importante era fazer a bola correr, o jogador não era
preciso. Dizia que tinha preferência de receber a bola
quem não ficava parado no vaivém do jogo como um morcego tirando proveito do
esforço dos companheiros. Lá estava ele ao lado de Mala, um
jogador sabido, a fotografia amarelecida pelo tempo,
pendurada na parede com a tinta desbotada.
A melhor dupla que armava o jogo para ele foi
formada com o alegre Lubião e o endiabrado Macaquinho. Ele
então jogava no Grêmio. Lubião fazia do jogo
um show à parte quando driblava ou lançava com perfeição a
bola longa para o companheiro. Macaquinho era um driblador contumaz, invejável. Um malabarista com seus
dribles curtos repetidos, fazendo o adversário ter
vexames. Lubião ou Macaquinho, municiando a bola
para ele, fez com que tivesse a sua melhor fase de centroavante
goleador no campeonato da Liga. Com aquela dupla sensacional, várias vezes fora
o goleador do Janízaros no campeonato.
O bigode branco, a cabeça calva, triste pelos cômodos da
casa acanhada, erguida numa das margens do rio, no bairro
da Burundanga. Macaquinho, Lubião, Juca, Mala e tantos outros jogadores,
que deixaram a sua marca no Campo da Desportiva, já tinham pendurado
as chuteiras, enquanto ele teimava em não abandonar o futebol, mesmo que
continuasse parado na pequena área do time adversário, nem precisando ser
marcado de perto pelo zagueiro. Não corria, movimentava-se com
dificuldade, não sabia o que fazer com a bola quando por acaso
chegava onde estava como uma máquina velha enferrujada, sem
força. Quase sempre era flagrado em impedimento.
Os torcedores não perdoavam sua
lerdeza na partida. Rodrigo Bocão com o seu berro
avassalador, que irrompia na garganta estrondosa, era
quem mais gostava de vaiar quando via Noca, mal das pernas, sem
conseguir pegar na bola. Gritava: “Sai do campo, capacete, lugar de ferrugem é
na sucata!” Torcedores apupavam. Um chamava Noca de cabeça pelada, bola de
bilhar, campo de aviação. Outro investia sem dó: Toicinho
luminoso, coco verde envernizado, deixa o jogo,
preguiçoso safado!
Jogava agora no Itapé, o pior time do campeonato.
Ultimamente dera para jogar com o gorro na cabeça, tentando esconder a careca
brilhante em tarde de sol e, assim, evitar que os
torcedores ficassem chamando-o por aqueles apelidos que tanto o
irritavam.
Naquele domingo de nuvens cor de chumbo, ninguém
podia imaginar o que estava reservado para Noca, na última partida
do segundo turno. O Itapé iria jogar com o Flamengo, que
já havia ganho o primeiro turno. Bastava que empatasse
com o Itapé para o rubro-negro terminar empatado em números de pontos com o
Fluminense. Ganharia o segundo pelo critério de ter vencido mais jogos no
campeonato do que o Fluminense. Ganharia o segundo turno e se
sagraria campeão invicto no ano em que a cidade comemorava cinquenta anos de emancipação política.
Era goleada certa do Flamengo, só um milagre poderia
fazer que o rubro negro até empatasse com o
lanterninha Itapé. O primeiro tempo terminou zero a zero. Nada que
faziam no jogo dava certo para os jogadores do Flamengo, que
jogava parecendo ser um time pequeno e não o esquadrão
rubro-negro temido, o que tinha mais torcida, o maior papão
de títulos no campeonato do Campo da Desportiva. Os
torcedores inflamados deram para cantar versos do hino do clube. “Vencer, vencer, vencer, uma vez Flamengo, Flamengo até
morrer... seja na terra, seja no mar... “
Durante a sua pior partida no campeonato daquele ano,
o Flamengo dera muito
azar, o centroavante Juarez frente ao gol acertou a bola
na trave por duas vezes. Perdeu um pênalti. Para piorar, no segundo tempo caiu
uma chuva forte, o gramado ficou enlameado em pouco
tempo. Os jogadores começaram a escorregar na cancha cheia de poça d’água.
Ficavam sujos de lama, tomavam quedas engraçadas quando iam disputar a bola. Os
torcedores sorriam e mangavam.
Nos acréscimos da partida, para a infelicidade dos
torcedores do Flamengo, a bola chutada pelo médio volante Brezegue
raspou na careca de Noca, desviou a trajetória , impedindo que o goleiro
Asclepíades fizesse a defesa: tomou velocidade e
foi entrar no gol.
Noca, sem fôlego, desde o começo da partida, como
era costume, contribuiu daquela vez, no final, para
que o Fluminense fosse o campeão do segundo turno e se
credenciasse a disputar o título do campeonato com o seu maior
rival.
Houve empate na primeira e segunda
partida. Na terceira, a decisiva, que seria concluída nos
pênaltis, para conhecer o campeão, caso terminasse
empatada no tempo regulamentar, o Fluminense venceu o Flamengo por
um a zero, tornando-se o campeão municipal no ano do cinquentenário da cidade.
Depois
daquele gol incomum, Noca decidiu parar em definitivo com
o futebol. O corpo não obedecia mais a um mínimo movimento que a cabeça
queria. Voltou a ser alegre em casa, afetuoso com a
mulher, bom conselheiro dos filhos, prestativo com os vizinhos. Por
fim, encerrara a carreira futebolística, deixando sua marca
histórica com o time do Itapé, o sempre lanterna do campeonato. Com
um gol esquisito, de cabeça, melhor dizendo, de
careca, no velho Campo da Desportiva, de tantas
batalhas, de gloriosa e saudosa memória.
Quando
perguntaram ao velho Noca, na barbearia do Álvaro, que tinha
sido zagueiro na Associação, por que resolveu jogar sem o gorro
naquela partida contra o Flamengo, ele sorriu e, calmo, não demorou
para informar ao distinto torcedor. Disse que na véspera do jogo o
seu colega Macaquinho apareceu em sonho. Com aquela cara de saguim, olhinhos
miúdos, dentinhos nervosos. Recomendou:
-
Jogue sem o gorro, no domingo irás conquistar a glória
na Desportiva!
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Cyro de Mattos
Baiano de Itabuna. Escritor e poeta, Doutor Honoris Causa
pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Sul da Bahia). Membro efetivo da
Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil, Academia de Letras de Ilhéus
e Academia de Letras de Itabuna.
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