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sexta-feira, 27 de julho de 2018

ITABUNA, TERRA AMADA: Fim de Carreira do Goleador - Conto de Cyro de Mattos


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Fim de Carreira  do Goleador 
Cyro de Mattos


            Se pudesse voltar no tempo, nada melhor poderia acontecer para ele  nesse mundo. Gostaria de ver aquele gol de calcanhar  no primeiro campeonato conquistado pelo  Grêmio. Andava desligado do trabalho na carpintaria. Não entregava as encomendas aos fregueses  no tempo prometido. Triste agora  pela casa. Desde que deixou de ser aquele centroavante inteligente, que fazia gols com um toque de  classe,  a torcida levantava e aplaudia de pé. Visivelmente se via no rosto que não estava de bem com a vida.

            Irritava-se com  qualquer coisa insignificante que acontecesse em casa. A comida,  que a mulher  preparava  com arte  e bom-gosto,  sempre elogiada por ele,  não produzia mais aquela sensação  que molhava de prazer o coração. Os olhos vermelhos como se tivesse chorado escondido no quartinho dos fundos.  Deixara de ser o marido carinhoso,  o pai paciente com os filhos, o vizinho admirado por seus préstimos  na hora necessária.
  
            Ensimesmado evitava falar com os de casa. Sentava na cadeira de vime e ficava na sala com os olhos fixados nas fotos dos times de futebol,  o quadro pendurado na parede com a tinta desbotada, a mancha da umidade em cada canto.  Lá estava a  famosa esquadra da Associação, que deu jogadores para os times do Rio, São Paulo, Belo Horizonte e Bahia, como naquele tempo era chamado  Salvador. Estreara  no Campo da Desportiva  como centroavante, num domingo de sol, no clássico dos clássicos local,  Janízaros contra a Associação.

            Quase um menino, que não ficava parado, nem temia o zagueiro alto e corpulento. Mexia-se  pelos dois lados, fazia bem  o pivô e deixava o zagueiro preso no lance. Mostrou logo que era   um centroavante inteligente, que veio para ficar entre os bons goleadores do campeonato da Liga.  Formou ao lado de Juca, o professor, uma dupla de atacantes  que se tornou célebre  pelas tabelinhas que fazia com facilidade.

            Fez gols espetaculares,  que deixavam o torcedor  pasmo, tirando-o do sério.  Gol sem ângulo, de lençol no zagueiro, por entre as pernas do goleiro.  Nesse tempo  aprendeu  muito  com Juca, que certa vez lhe disse,  bater na bola  era questão de jeito.  O atacante devia estar sempre  no momento certo dentro da área,  receber a bola, não se afobar,   fazer o gol como se estivesse fazendo uma obra de arte. Não era por acaso que  Juca era chamado de professor, maestro,  mago, milagreiro,  usava bem o  pé esquerdo e o direito, dominando e batendo na bola com inteligência  e  precisão. Era também bom no cabeceio.
    
            Fixava o olhar no retrato com o esquadrão do São Cristóvão, o time dos motoristas.  Lá estavam Mudo, Almir e  Mala, este em fim de carreira.  Era um franzino atacante, de pernas compridas,  parecia lento, mas  aparecia  na grande área quando menos se esperava. Desviava-se do marcador com um  drible seco  e entregava a bola a ele para fazer o gol. Fez uma dupla de atacante inesquecível com Mala  quando então se firmara como um goleador implacável no cabeceio. Mala  observava que importante era fazer a bola correr, o jogador não era preciso.  Dizia  que tinha preferência de receber a bola quem não ficava parado no vaivém do jogo como um morcego tirando proveito do esforço dos companheiros.   Lá estava ele ao lado de Mala, um jogador sabido, a  fotografia  amarelecida pelo tempo, pendurada na parede com a tinta desbotada.

            A  melhor dupla que armava o jogo para ele foi formada com o alegre Lubião e  o endiabrado Macaquinho. Ele então  jogava no Grêmio.  Lubião  fazia do jogo um show à parte quando driblava ou  lançava com perfeição a bola longa para o companheiro.  Macaquinho era um driblador contumaz,  invejável.  Um  malabarista com seus dribles curtos  repetidos, fazendo  o adversário ter vexames.   Lubião ou Macaquinho,  municiando a bola para ele,  fez com que tivesse a sua melhor fase de centroavante goleador no campeonato da Liga. Com aquela dupla sensacional, várias vezes fora o goleador do Janízaros no campeonato.

            O bigode branco, a cabeça calva, triste pelos cômodos da casa acanhada,  erguida numa das margens do rio, no bairro da Burundanga. Macaquinho, Lubião, Juca, Mala e tantos outros jogadores, que deixaram a sua marca no Campo da Desportiva,  já tinham pendurado as chuteiras, enquanto ele teimava em não abandonar o futebol, mesmo que continuasse parado na pequena área do time adversário, nem precisando ser marcado de perto pelo zagueiro.  Não corria, movimentava-se com dificuldade,  não sabia o que fazer com a bola quando por acaso chegava onde estava  como uma máquina velha enferrujada, sem força.  Quase sempre era flagrado  em impedimento.

            Os  torcedores  não perdoavam sua lerdeza na partida. Rodrigo Bocão  com o seu berro avassalador,  que irrompia na garganta estrondosa,  era quem mais gostava de vaiar quando via Noca,  mal das pernas, sem conseguir pegar na bola. Gritava: “Sai do campo, capacete, lugar de ferrugem é na sucata!” Torcedores apupavam. Um chamava Noca de cabeça pelada, bola de bilhar, campo de aviação. Outro investia sem dó: Toicinho luminoso,  coco verde envernizado,  deixa o jogo, preguiçoso safado!

            Jogava agora no Itapé, o pior time do campeonato. Ultimamente dera para jogar com o gorro na cabeça, tentando esconder a careca brilhante em tarde de sol e, assim,  evitar que os torcedores  ficassem chamando-o por aqueles apelidos que tanto o irritavam.

            Naquele domingo de nuvens cor de chumbo,  ninguém podia imaginar o que estava reservado para Noca,  na última partida do segundo turno. O  Itapé iria jogar com o Flamengo,  que já havia ganho  o primeiro turno.   Bastava que empatasse com o Itapé para o rubro-negro terminar empatado em números de pontos com o Fluminense. Ganharia o segundo pelo critério de ter vencido mais jogos no campeonato do que o Fluminense. Ganharia  o segundo turno e se sagraria campeão invicto no ano em que a cidade comemorava  cinquenta anos  de emancipação política.

            Era goleada certa do Flamengo, só um milagre poderia fazer que o rubro negro  até empatasse com o lanterninha  Itapé. O primeiro tempo terminou zero a zero. Nada que faziam no jogo dava certo para os jogadores do Flamengo, que jogava  parecendo ser um time pequeno e não  o esquadrão rubro-negro temido, o que tinha mais torcida, o maior papão de  títulos no  campeonato do Campo da Desportiva. Os torcedores inflamados deram para cantar  versos do hino do clube. “Vencer, vencer, vencer, uma vez Flamengo, Flamengo até morrer...  seja na terra, seja no mar... “

            Durante a sua pior partida no campeonato daquele ano, o Flamengo dera   muito azar,  o  centroavante Juarez frente ao gol acertou a bola na trave por duas vezes. Perdeu um pênalti. Para piorar, no segundo tempo caiu uma chuva forte,    o gramado ficou enlameado em pouco tempo. Os jogadores começaram a escorregar na cancha cheia de poça d’água. Ficavam sujos de lama, tomavam quedas engraçadas quando iam disputar a bola. Os torcedores sorriam e mangavam.

            Nos acréscimos da partida, para a infelicidade dos torcedores do Flamengo, a bola chutada pelo médio volante  Brezegue raspou na careca de Noca, desviou a trajetória , impedindo que o goleiro Asclepíades fizesse a defesa:  tomou  velocidade e foi  entrar no gol.

            Noca,  sem fôlego, desde o começo da partida, como era costume,   contribuiu daquela vez, no final,  para que o Fluminense  fosse o campeão do segundo turno  e se credenciasse a disputar o título do campeonato com o seu  maior rival.

            Houve empate na primeira e segunda partida.  Na terceira,  a decisiva, que seria concluída nos pênaltis,  para  conhecer o campeão, caso terminasse empatada no tempo regulamentar,  o Fluminense venceu o Flamengo por um a zero, tornando-se o campeão municipal no ano do cinquentenário da cidade.

            Depois daquele gol incomum, Noca  decidiu parar em definitivo  com o futebol. O corpo não obedecia mais a um mínimo movimento que a cabeça queria.   Voltou a ser alegre em casa,  afetuoso com a mulher, bom conselheiro dos  filhos, prestativo com os vizinhos. Por fim,  encerrara a carreira futebolística, deixando sua marca histórica com o time do Itapé, o sempre lanterna  do campeonato. Com um gol esquisito,  de cabeça, melhor dizendo, de careca,   no velho Campo da Desportiva,  de tantas batalhas,  de gloriosa e  saudosa memória.

            Quando perguntaram ao velho Noca,   na barbearia do Álvaro, que tinha sido zagueiro na Associação,  por que resolveu jogar sem o gorro naquela partida contra o Flamengo,  ele sorriu e, calmo, não demorou para informar ao distinto torcedor. Disse que  na véspera do jogo o seu colega Macaquinho apareceu em sonho. Com aquela cara de saguim, olhinhos miúdos, dentinhos nervosos.  Recomendou:  
        - Jogue  sem o gorro, no domingo irás conquistar a glória na  Desportiva!

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Cyro de Mattos 
Baiano de Itabuna. Escritor e poeta, Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Sul da Bahia). Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna.

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