A ilha de Cícero
Havia uma
pequena ilha no Rio Cachoeira, nas
imediações do Salobrinho, e nela habitava um preto velho por nome de Cícero. Vivia
ele na mais completa solidão, tendo apenas por companhia, o canto dos pássaros e o ritmo das correntezas.
Ali resolvera cultivar a terra fértil, plantando cana-de-açúcar, laranjeiras e
abacateiros; somente ia ao povoado em caso de necessidade. Aos sábados fazia as
suas compras e aproveitava para tomar alguns pileques, mas logo rumava para o
seu cantinho, sempre preocupado com os vândalos, que normalmente invadiam o seu
sítio para roubar.
Muita gente
temia o velho Cícero, pois se acreditava ser ele dotado de poderes
sobrenaturais, e até havia quem o chamasse de feiticeiro, por causa das
artimanhas que se ouvia contar a seu respeito.
Realmente,
não se sabe ao certo a respeito dos poderes mágicos daquele homem, entretanto
vários fatos levaram o povo a acreditar na sua periculosidade, a exemplo da sua
obstinada permanência na ilha, mesmo quando havia sérias ameaças de enchentes. Se
alguém o advertia sobre as cheias ele retrucava ironicamente: “Não tenho medo,
sei muito bem me defender”. Durante todo o tempo em que ali viveu alguém jamais
testemunhou que ele abandonasse a sua ilha por causa das águas e, quando o
Cachoeira amanhecia abarrotado, todos ironizavam: “Desta vez o velho Cícero foi
pro inferno”. Quando o rio voltava ao seu curso normal, lá estava o velho são e
salvo, cuidando normalmente das plantações, para a surpresa de todos.
Os moradores
mais antigos contam um episódio envolvendo Cícero e um pescador conhecido pela
alcunha de “Pepita”. Como a ilha era cheia de uma variedade de árvores
frutíferas, aquele lugar, efetivamente, consistia num convite irresistível aos
olhos dos que por ali passavam. Apesar da rígida vigilância, os pescadores
conseguiam burlar a atenção do velho, penetravam na chácara e roubavam as
apetitosas laranjas, para em seguida saírem zombando, chamando-o de velho
caduco.
Foi assim
que, numa certa manhã, o jovem pescador se encontrava pescando nas proximidades
da ilha, talvez não resistindo à fome, invadiu os pertences de Cícero e dali
levou algumas laranjas. Terminada a pescaria, o jovem ganhou o caminho de casa.
Na estrada, porém, sentiu que algo estranho estava lhe acontecendo: uma sensação
nervosa, aos poucos foi tomando conta do seu corpo, e a sua cabeça pôs-se a
girar, a girar... Entrementes, um conhecido que também pescava por ali, o encontrou
em estado lastimável. “Pepita” estava aluado: rodopiava, falava asneiras e cantava
assim: “O batalhão tá me chamando/ estou aqui seu coroné”. O rapaz estava
tresloucado, e muito lhe custou a recuperação. Cícero ficou sabendo do
acontecido e sempre que ia ao povoado, comentava para os mais íntimos: “Bem
feito! Nunca mais ele terá a petulância
de roubar as minhas laranjas”.
O velho
Cícero viveu por muitos anos naquela ilhota, “Ilha de Cícero”.
(SALOBRINHO - Encantos e Desencantos de um Povoado)
Sherney Pereira
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário