Querida Ivelise, somos testemunhas de seu amor a Nelson,
vivido de modo intenso, de parte a parte, e cuidadoso. Prova desses atributos
consolidou-se na travessia recente, cheia de desafios, dolorosa, partilhada
pela família, tornada pelo afeto algo mais leve.
Meu caro Nelson, a emoção não tem métrica, estamos cercados
de lágrimas-nuvens, saudade, comoção. Ao mesmo tempo, tristes e feridos, mas
consolados, na dimensão fraterna que organiza a presente cerimônia de adeus.
Não se contava com a sua morte. Certas pessoas não deviam partir, sobretudo em
momentos ásperos da História.
Como disse Tarkovsky, o cineasta esculpe o tempo. Nelson
Pereira dos Santos, ao cinzelar imagens vigorosas de nossa identidade, quando o
Brasil ainda mal se conhecia, deu protagonismo à cidade, como conversamos Ana
Maria Machado e eu, cidade multiforme, dando início a um diálogo raro de uma
cidade nada transitiva, alvejada pela desigualdade.
Nelson teve a ousadia não apenas de denunciar, mas de criar
uma estética da denúncia, humanista, corajosa, que transcendesse leituras fundamentalistas.
A desigualdade nítida. Uma estética para compreendê-la e uma ética para
denunciá-la: instância permanente de emancipação.
À direita de Nélson, nesta sala dos poetas românticos,
encontra-se Castro Alves. A cadeira de Nelson não é uma contradição no
adjetivo. Nelson e Castro Alves possuem não raras convergências, sob uma
perspectiva generosa, batendo-se para o fim de modos assimétricos, contra a
injustiça, no cinema e na praça, que é do povo, integra e não separa, sob uma
ótica republicana incontornável.
Nelson amou como poucos a cultura popular, antes que muitos
percebessem essa riqueza. Criou imagens antológicas, que até hoje povoam nossas
retinas. A sua obra não pertence a seu autor, é propriedade de nossa gente e do
futuro. O autor viverá para sempre. Esse ‘escultor do tempo’ está de
viagem e leva um amuleto, no dia da festa popular de São Jorge, a poucos passos
daqui, onde o povo se reconhece, nos terreiros e igrejas. “O amuleto de Ogum” é
um filme que todos conhecem, todos celebram, porque é um símbolo de nosso amigo
Nelson, um amuleto de partes dispersas que se integram a partir de uma obra
generosa, de um olhar temperado e produtivo, dedicado ao povo brasileiro.
Querido Nelson, é difícil falar de você sem perder o fio de
uma razão, conter as lágrimas. Ouço de algum canto da sala a sua gargalhada tão
sonora, tão independente, salvo-conduto por tantos e diversos territórios que
você atravessou sem se fixar. Uma ode à sua independência. Em todos os espaços,
você jamais negociou a sua verdade, simples e altivo, suave e
corajoso.
Nelson foi um poeta da luz, esculpiu na luz a “forma mentis”
de chegar ao Brasil. Imagino desde já suas conversas intermináveis, sem
maiores cerimônias, como o reencontro de irmãos, entre Rossellini e De Sica,
Leon Hirszmann e Joaquim Pedro de Andrade.
Mas o meu coração, Nelson, vai com você. Sem mágoa, seu
coração, isento de rancores e das paixões tristes. Aceite, Nelson, a saudade de
todos, dos que viveram e dos que estão para chegar ao mundo. Você é nosso, enquanto
houver Brasil, enquanto houver defesa da arte e inquietação para integrar as
partes dispersas da República.
Adeus, querido Nélson. Adeus.
Comunità Italiana, 24/05/2018
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Marco Lucchesi - Sétimo ocupante da cadeira nº 15 da ABL,
eleito em 3 de março de 2011, na sucessão de Pe. Fernando Bastos de Ávila, foi
recebido em 20 de maio de 2011 pelo Acadêmico Tarcísio Padilha. Foi eleito
Presidente da ABL para o exercício de 2018.
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