Perder um irmão querido representa um verdadeiro sofrimento.
Foi o que aconteceu na semana passada, quando se foi o estimado Júlio, exemplo
de lutador e intelectual de primeira ordem. Exerceu forte militância na
política estudantil e chegou a ser diretor da UME (União Metropolitana de
Estudantes). Foi o fundador do jornal "Novos Rumos", que tinha grande
circulação entre os estudantes.
Formado em engenharia elétrica, durante muitos anos
trabalhou no escritório de Oscar Niemeyer. Nessa condição, acabou sendo
contratado por Adolpho Bloch para colaborar na construção do Edifício Manchete.
Numa reunião com Niemeyer, Adolpho Bloch foi apresentado a Júlio e gostou dele:
"Eu não sabia que você tinha um irmão tão inteligente". Era bem o
estilo do fundador da Manchete.
Leitor voraz dos clássicos da literatura, especialista em
francês, idioma que dominava plenamente, meu irmão tinha predileção pelo canto
e fez parte do Coral Israelita Brasileiro, com a sua bonita voz de tenor.
No enterro, uma das filhas leu poesia de Lêdo Ivo, que ele
guardava junto aos seus livros. O título é "Montepio" e vale a pena
recordar alguns trechos mais significativos:
"Que herança transmite o pai a seu filho? Não lhe deixa
casa ou sombra de apólice nem tampouco o sujo de seu colarinho. Não lhe lega a
velha mala das viagens nem os seus amores e as suas bobagens. E as roupas do
pai que a chuva encolheu no filho não cabem. Com pau seco e fogo o pai de
resina arma o seu legado. Deixa a fogueira que ele fez sozinho no escuro da
mata.
(...) E antes de mudar-se de suor em musgo o pai dá ao filho
como pé-de-meia algo da paisagem - sobra de pupila, moeda de lágrimas.
Deixa-lhe o balaio cheio de apetrechos e o jeito de andar com as mãos às
costas. Para o filho, passa todo o seu cansaço, suas promissórias e seu olhar
baço.
(...) O pai dá ao filho o ninho vazio achado no bosque e a
raposa morta por sua espingarda. Dá-lhe a sua anônima grandeza do nada. Sua
herança é o frio que sentiu rapaz quando impaludado. Dá-lhe a lua imensa na
noite azulada. Estende-lhe as mãos sujas de carvão molhadas de orvalho.
Fala-lhe da dor que sente nos calos.
[...] Ser pai é ensinar ao filho curioso o nome de tudo:
bicho e pé de pau. Que o pai, quando morre, deixa para o filho o seu montepio -
tudo o que juntou de manhã à noite no batente, dando duro no trabalho.
Deixa-lhe palavras."
Todas as experiências de vida somadas à valorização do
trabalho e da família são a herança maior que um pai pode deixar a seus filhos
por meio do diálogo e do exemplo.
O Estado do Maranhão, 03/05/2018
......
Arnaldo Niskier - Sétimo ocupante da Cadeira nº 18 da ABL,
eleito em 22 de março de 1984, na sucessão de Peregrino Júnior e recebido em 17
de setembro de 1984 pela acadêmica Rachel de Queiroz. Recebeu os acadêmicos
Murilo Melo Filho, Carlos Heitor Cony e Paulo Coelho. Presidiu a Academia
Brasileira de Letras em 1998 e 1999.
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