Gardênia
colocou um ponto final nas páginas que rabiscava. Nem sabia mesmo porque estava
passando para o papel aquelas estórias
tantas vezes ouvidas contar. Talvez uma maneira de deixar as horas passarem, de
encher o tempo nesses dias acinzentados e frios de inverno. Enquanto vestia um
agasalho, foi se chegando automaticamente à janela, de onde vislumbrou uma
nesga do manso Cachoeira, estirado como branco lençol um pouco adiante. Veio-lhe
então a reminiscência de sua meninice
quando, às margens daquele rio, ficava a mirar a paisagem multicolorida dos
lajedos atapetados de lençóis, vestidos,
toalhas que as lavadeiras, e eram muitas, ali espalhavam a secar. Era um
vasto mosaico de formas e cores variegadas que alegravam a vista. Ela nascera e
se criara perto desse rio. A vida toda foi sua vizinha, por isso o conhecia tão
bem, tanto nas épocas calmas como no furor das enchentes. Quantas estórias
ouviu sobre grandes nadadores que o desafiaram e foram, implacavelmente
tragados pelos redemoinhos e “peraus” traiçoeiros. Saiu-lhe do fundo da
lembrança a figura de Exupério, caboclo forte, empregado na roça de sua avó,
vítima da enchente. Numa atitude exibicionista, ele lançou-se ao rio num dia de
grande cheia, diante de uma assistência
que das margens acompanhava apreensiva a sua fanfarrice. Quis nadar, mas
logo perdeu as forças, descendo aos trambolhões, gritando por socorro, enquanto
a multidão a tudo assistia aflita e impotente, vendo-o descer rápido, levado
pela correnteza até sumir num sorvedouro.
E as
cabeçadas d ‘água!
Quantas
vezes as lavadeiras não saíram correndo, catando rapidamente as peças de roupa
estendidas, ao ouvirem o grito de alerta dos boiadeiros que passavam vindos de
Ferradas: - Corram! A cabeçada d ‘água vem vindo perto!
Diante do
perigo, todos fugiam espavoridos das margens e a notícia se espalhava:
- A cabeçada
d’ água vem aí!
De
repente, toda a placidez do Cachoeira desaparecia. A massa líquida subia num
crescendo violento, não respeitando os limites de suas margens. Em pouco tempo
os lajedos desapareciam, árvores eram arrancadas, canoas desatadas de suas
amarras e animais arrastados na
correnteza brutal. Enraivecido, ele passava da calma à violência,
despertando comentários da parte da população que, curiosa, corria a espiá-lo das margens. As abundantes
chuvas na cabeceira e afluentes provocavam o fenômeno inesperado. Um ruído que
metia medo avisada que o velho Cachoeira estava enfurecido e disposto a matar
quem o enfrentasse.
Mas agora
ele anda calmo. Sua selvageria foi domada, os homens o enquadrara m em seus
limites e lhe deram outro visual, até mais bonito. As suas margens à noite
perderam a tristeza que a escuridão lhes imprimia. Desapareceram as luzinhas
vermelhas e tremulas dos fifós dos pescadores,
substituídas pela claridade das lâmpadas elétricas que se refletem no
espelho de suas águas, em imagens invertidas de beleza e fantasia.
Gardênia
ainda olhava o velho Cachoeira, seu amigo de infância, quando ouve, vinda do
passado, a voz enérgica de sua mãe: - “Menina, você não toma mais banho no rio.
Pode pegar febre maligna!” Ah! Como era bom mergulhar naquelas águas rasas e
claras para catar pedrinhas lisas no fundo ou filhotes de camarão escondidos em
pequenas locas nos lajedos. São as estórias do rio, são as estórias da terra
que lhe chegam à memória com a saga dos imigrantes plantadores de cacau que,
acompanhando o caminho do rio e buscando suas margens férteis, nelas se
estabeleceram para dar começo à história vibrante da gente Grapiúna.
E Gardênia
busca no vazio aquelas figuras heroicas
do passado. Busca mentalmente ver a casa tosca do pioneiro Félix Severino, a
primeira de Tabocas, levantada naquelas margens, marco inicial de uma
civilização. E o que foi feito do “sobrado do coronel”, alma e cérebro de
Itabuna nascente? Era ali perto do rio que ele também se erguia com a sua
sóbria dignidade. Também voltada para o Cachoeira estava a Igreja Matriz. Que
ideia fazem as novas gerações dessa Igreja, para cuja construção muita gente
piedosa ajudou, carregando pedras na cabeça, numa manifestação humilde de fé? O
que é feito desse Templo, símbolo da crença religiosa de um povo? Que lembrança
o tempo guardou dos homens valentes que desbravaram essa terra e geraram
riquezas? Que sabem deles essas novas gerações? É uma pena, diz Gardênia para
si mesma. O tempo irá se encarregando de a tudo envolver no silêncio do
esquecimento.
Retornando
ao interior do seu quarto, vai relendo as notas que escrevera. Muitos anos se
passaram desde o dia em que os dois destemidos desbravadores se fixaram na
gleba verde das margens do Cachoeira. De lá para cá, as terras do Sul se
transformaram num imenso cenário de incontido progresso. Quantos centros de povoamento brotaram no meio do mato,
quantas rodovias rasgaram essas terras! Todo o Sul da Bahia passou a vibrar numa
ânsia frenética de crescer e engalanar-se numa roupagem nova. As morosas tropas
de trote cadenciados que transportavam sacas de cacau, já quase não são vistas.
Os homens trocaram o lombo dos cavalos pela velocidade dos automóveis. Hoje é a rapidez dos carros e
aviões que prevalece, é a pressa de economizar tempo, vencendo rapidamente
grandes distâncias, de fazer-se bons e múltiplos negócios.
Novas
riquezas surgiram na região além do cacau,
novos tempos vieram e gente de todos os cantos do país ainda busca
esperançosa os favores dessas terras pródigas. O progresso a tudo transformou.
Só o homem parece não ter mudado muito. Não será ele ainda o menino do passado,
no tempo do “trabuco” o da “repetição”? que dizem os jornais? Não são as notícias
de crimes de mortes, de tocaias, ataques
a propriedades, invasão de terras o que enche diariamente as páginas que se lê?
Gardênia
volta à janela a olhar de longe o seu velho amigo. E fica a pensar. Sim, novos
e melhores tempos virão. Terão de vir.
Afinal, essas terras foram trabalhadas por homens que as amaram e lutaram com
muita vontade de vencer. O seu destino será grande porque os velhos pioneiros,
aqueles homens empreendedores, corajosos, não morreram de todo. Eles ainda
vivem e labutam no sangue e na alma dos seus descendentes, e com eles há os que
vão chegando, como num ciclo perpétuo e renovador, abrindo novos caminhos para
novos tempos.
O velho
Cachoeira, que viu acampar nas suas margens os primeiros desbravadores e viu as
primeiras casas de Tabocas, assistiu à passagem das primeiras tropas e boiadas,
presenciou crimes e gigantesco trabalho
de pioneirismo, será a mesma testemunha muda de uma bela histórica no futuro.
(TERRAS DO SUL)
Helena Borborema
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HELENA BORBOREMA - Nasceu em Itabuna. Professora de
Geografia lecionou muitos anos no Colégio Divina Providência, na Ação Fraternal
e no Colégio Estadual de Itabuna. Formada em Pedagogia pela Faculdade de
Filosofia de Itabuna. Exerceu o cargo de Secretária de Educação e Cultura do
Município.
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