O lavrador e o sábio
O sábio indiano Narada pediu que Deus lhe mostrasse um homem
amado por Ele. O Senhor aconselhou-o a procurar certo lavrador.
- O que você faz para que o Senhor lhe ame tanto? -
perguntou Narada ao lavrador, quando encontrou-o.
- Digo Seu nome de manhã. Trabalho o dia inteiro, de noite
divirto-me um pouco, e digo de novo o Seu nome antes de dormir.
- Só isso?
- Só isso.
"Acho que errei de homem", pensou Narada. Naquela
noite, ele teve um sonho: O Senhor aparecia pedindo:
"Encha uma tigela de leite, vá até a cidade e volte -
sem derramar uma gota sequer".
Na manhã seguinte Narada - acostumado a seguir os sinais -
fez o que o Senhor lhe ordenava. E de noite, teve outro sonho, onde Deus
aparecia perguntando:
"Quantas vezes você pensou em mim, enquanto carregava o
leite?".
"Como podia pensar no Altíssimo? Estava preocupado para
não derramar o conteúdo da tigela!".
"Uma simples tigela fez você Me esquecer. E o lavrador,
como todos os seus afazeres e com sua diversão noturna, pensa em Mim duas vezes
ao dia".
A loja em Bagdá
Abu Sari tinha uma loja de quinquilharias no meio do
principal mercado de Bagdá. Passava o dia vendendo, comprando, e barganhando
com os fregueses.
Mas, toda tarde saía para seu pequeno jardim nos fundos, e
rezava.
Certa vez foi procurado por um monge, que dizia estar
próximo de Deus, e queria compartilhar com Abu Sari sua felicidade.
- Onde você vive? - perguntou o comerciante.
- Nas montanhas. Ali consigo contemplar a face do Altíssimo,
e mergulhar em suas bênçãos.
- Se você mora nas montanhas, isto significa que está
distante dos homens, e quem se afasta das criaturas que Ele criou não pode
estar próximo do mundo espiritual.
"Um homem iluminado vive no meio de um mercado, cuida
de seus filhos, protege sua família, e é justamente sua vida normal que o faz
estar sempre perto da presença de Deus".
Só a metade é sagrada?
O venerável Nitju aproximou-se do mestre, fez uma
reverência, e sentou-se ao seu lado.
- Tenho feito as meditações, preces, e os exercícios que o
senhor mandou. Mas eles não ocupam todo o meu tempo, e então saio com amigos e
amigas.
O mestre não disse nada. Nitju continuou:
- E fico com a sensação de que só metade do que faço é
sagrado.
- Você, quando está na mesa com os amigos, aplica os
conhecimentos adquiridos durante as práticas espirituais?
- Não. Apenas me divirto.
- Então, o seu dia é inteiramente sagrado. Porque equilibra
a disciplina da Busca com a alegria da Vida - concluiu o mestre.
Na estrada de Damasco
O homem caminhava pela estrada de Damasco. Lembrava seu amor
perdido, e sua alma estava em prantos. "Pobre do ser humano que conhece o
amor", pensava. "Jamais será feliz, com o medo de perder a quem
ama".
Neste momento, escutou um rouxinol cantando.
- Por que você age assim? - disse o homem ao rouxinol. - Não
vê que minha amada, que gostava tanto de seu canto, já não está mais aqui ao
meu lado?
- Canto porque estou contente - respondeu o rouxinol.
- Você nunca perdeu alguém? - insistiu o homem.
- Muitas vezes - respondeu o rouxinol. - Mas meu amor
continuou o mesmo.
E o homem sentiu mais esperança em seu caminho.
Diário do Nordeste , 31/03/2018
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Paulo Coelho - Oitavo ocupante da Cadeira nº 21da ABL,
eleito em 25 de julho de 2002 na sucessão de Roberto Campos e recebido em 28 de
outubro de 2002 pelo Acadêmico Arnaldo Niskier.
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