O poder do exemplo
Com frequência, a crítica reunia sob um rótulo geral os
autores de livros infantojuvenis que estrearam nos anos 1970, ganhando
notoriedade, prêmios e milhões de leitores. Éramos chamados de “filhos de
Lobato”. Alguns anos depois, o escritor Ricardo Azevedo propôs uma correção,
para “irmãos de Lobato”. O que importava nessa distinção não era a origem ou
data de nascimento, e sim uma experiência poderosa que caracterizava o grupo: a
de termos vivido nossos anos de formação num Brasil que se industrializava e
urbanizava rapidamente mas ainda tinha muito fortes raízes rurais — um pé na
roça. Conhecíamos milharal e galinheiro, leite bebido no curral e casa de
farinha, cheiro de capim-gordura e rangido de porteira.
Podíamos morar em cidade e ir à escola, mas nas férias ou em
visita aos parentes do interior, brincávamos no quintal com os primos e outras
crianças que moravam lá. Nesse encontro, aprendíamos e nos ensinávamos
mutuamente. Desde subir em árvores ou andar a cavalo a brincar de bandido e
mocinho como nos filmes. Nas refeições, por exemplo, a criançada urbana via a
habilidade com que tantos dos companheiros eram exímios na arte da “fazer
capitão”: jogar farinha em cima do feijão com arroz, misturar tudo com a mão
dentro do prato fundo, formar uns bolinhos e levar direto à boca, sem garfo ou
colher. Por outro lado, eles se admiravam de ver a garotada da cidade usando
talheres e se exercitavam em manejar com naturalidade aqueles utensílios.
Nesses modelos recíprocos, nos aproximávamos tanto quanto nas brincadeiras, e
nos irmanávamos, apesar das diferenças copiadas dos nossos pais.
O ser humano aprende de diversas maneiras. Talvez nenhuma
seja tão poderosa quanto o exemplo, a imitação do que vemos funcionar a nosso
redor. Sobretudo, quando vem de pessoas que admiramos, por quem temos afeto,
com quem queremos nos parecer. O que popularmente se passou a chamar de
“ídolos”, pessoas que exercem um papel modelar e influenciam muita gente. Sempre
digo isso, a respeito de campanhas de estímulo à leitura. Nada é tão eficiente
para promover o gosto pelos livros em uma criança quanto ter por perto adultos
lendo e comentando suas leituras.
Por isso, a gravidade do desacato à lei aumenta quando
praticada por quem é alvo da admiração coletiva. O ídolo, assim, vira um modelo
pernicioso. Um mau exemplo. Não foi outra a razão para o repúdio ao erro de
marketing que ficou conhecido como “a lei de Gerson” e que até hoje persegue a
imagem do ex-jogador que aconselhava “levar vantagem em tudo”.
Esse efeito é que distingue o castigo a um reles espertalhão
da condenação de uma esperteza nada reles, quando praticada por um político
admirado, uma celebridade esportiva ou artística, um juiz respeitado, um
empresário de sucesso. Se os delitos e erros das estrelas pretendem contar com
a imunidade pelo fato de não serem praticados por “um homem comum”, e assim
garantir a impunidade dos malfeitores, não dá para esquecer que esse processo é
ainda mais grave que o próprio delito, pois corrói de forma nefasta o tecido
social. Culpado tem de pagar pelo que fez, na forma da lei e garantido o
direito de defesa. Caso contrário, vira o “liberou geral” que constatamos
nestes tempos de violência desenfreada e roubalheira sem limites.
Se dá para escapar sem pagar, todos se acham no direito de
fazer o que bem entendem: assaltar, agredir, saquear, caluniar, atacar paciente
dentro de ambulância, revender material hospitalar descartável após usado, sair
dando tiro a torto e a direito, apropriar-se de verba de escolas, roubar carga,
receptar produtos roubados, comprar de quem não dá nota fiscal… Todos entendem
que devem ser exceção à lei — dos carros oficiais que desrespeitam o código de
trânsito aos magistrados que driblam limites legais de tetos de vencimentos,
passando por fiscais que cobram propina. Se nada acontece com os bacanas, nada
deterá os outros. E todos viram bandidos , como a tevê tem mostrado, em cenas
impressionantes de arrastões, assaltos e espancamentos. Um pesadelo espantoso.
Só que real.
“Ó, pátria amada, por onde andarás?/ Teus filhos já não
aguentam mais…” O refrão da Beija-Flor é um pedido de socorro. Denuncia a
corrupção das ratazanas, a violência armada que manda na cidade, a conivência
das autoridades com a bandidagem. Enfim, o abandono que todos vivemos, fora da
lei.
Lei é para ser respeitada, condenação é para ser cumprida. A
procuradora-geral Raquel Dodge frisou que só assim se afasta a sensação de
impunidade e se restabelece a confiança nas instituições. E a presidente do
STF, ministra Cármen Lúcia, sublinhou que o descumprimento da lei é mau exemplo
que contamina e compromete.
Já ensinavam nossos avós: o exemplo vem de cima. E quando
esse é um mau exemplo, instalam-se a falta de limites, o descontrole geral e a falência
do Estado que se refletem diariamente na violência urbana e na sensação de que
estamos nas mãos de bandidos em todos os níveis. Intocáveis até quando?
Ana Maria Machado é escritora.
O Globo, 17/02/2018
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Ana Maria
Machado - Sexta ocupante da Cadeira nº 1 da ABL, eleita em 24 de abril de
2003, na sucessão de Evandro Lins e Silva e recebida em 29 de agosto de 2003
pelo acadêmico Tarcísio Padilha. Presidiu a Academia Brasileira de Letras em
2012 e 2013.
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