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sábado, 24 de fevereiro de 2018

A FORÇA DA MANSIDÃO - Yoskhaz


A força da mansidão


Todas as vezes em que eu via a clássica bicicleta de Loureiro, o elegante sapateiro amante dos livros e dos vinhos, encostada no poste em frente à sua oficina, eu me sentia um homem de sorte. Os horários inusitados e imprevisíveis de funcionamento da oficina já eram lendários na pequena e charmosa cidade que ficava no sopé da montanha que acolhe o mosteiro.

Eu terminara mais um ciclo de estudos na Ordem e o trem que me levaria até o aeroporto mais próximo apenas passaria no final do dia. A possibilidade de preencher esse tempo conversando com o Loureiro me enchia de alegria. Um mês antes, quando eu passei rumo ao mosteiro, o sapateiro enfrentava uma delicada questão. O filho do prefeito era um jovem empresário que abrira recentemente uma loja, franquia de uma famosa marca de sapatos. Na época, quando lhe perguntei se esse fato poderia abalar os seus negócios, Loureiro me disse com tranquilidade: “Penso que não somos concorrentes, embora ambos trabalhem com produtos de excelente qualidade. Os sapatos que ele vende são belíssimos, sempre atualizados de acordo com as últimas tendências da moda, produzidos por designers internacionais, conhecidos no mundo todo. Os meus são inteiramente artesanais; desenhados e moldados um a um, de acordo com o gosto e a necessidade do cliente. Atendemos a público com interesses distintos.” Fez uma pequena pausa antes de concluir: “No mais, a concorrência é sempre bem-vinda por desestabilizar a rotina dos dias. Quando isso acontece somos forçados, por sobrevivência, a buscar um novo ponto de equilíbrio. Então, avançamos.”

No entanto, nesse período em que eu ficara recolhido no mosteiro, os fatos mostraram que o filho do prefeito pensava bem diferente do meu amigo sapateiro. O jovem empresário disparara uma agressiva campanha difamatória contra o antigo artesão. Apoiado pela rádio local, de propriedade do seu pai, alegava as mais diversas disparidades, desde a métodos ultrapassados de confecção até supostos clientes que tiveram problemas ortopédicos por usar os sapatos feitos por Loureiro. Não satisfeito, sabendo que Loureiro tinha clientes de muitos anos, que vinham de outros lugares atrás dos seus sapatos, conseguiu que uma conhecida revista fizesse uma matéria sobre o assunto, pulverizando as mentiras a um alcance ainda maior.

Naquele dia, a oficina nunca me pareceu tão pequena. Desde cedo, quatro amigos de longa data do sapateiro, residentes e comerciantes na charmosa cidadezinha, tinham transformado o atelier em quartel-general para decidirem as providências que tomariam. Pela minha larga experiência como publicitário, fui recebido pelos quatro amigos como um bom reforço de artilharia. O sereno artesão se limitava a encher as xícaras com café fresco e a ouvir as calorosas opiniões sobre o assunto. Coloquei-me à disposição e adiantei que poderiam contar comigo. Se fosse preciso, adiaria a minha viagem pelo tempo necessário.

Em poucos minutos eu estava completamente envolvido naquela batalha. Enquanto eu traçava uma estratégia de marketing, ouvia sobre a necessidade de contratar um advogado para levar o filho do prefeito diante de um tribunal. Falou-se até mesmo em conseguir alguém para apedrejar a loja do empresário na calada da noite. Os planos eram muitos e houve quem sustentasse que deveríamos usar todos eles. A apaixonada reunião do Alto Comando durou ininterruptamente até a hora do almoço, quando já tínhamos tudo esquematizado. Até que eu, incomodado com o silêncio de Loureiro, o perguntei se ele estava de acordo. Diante de todos os olhares, o sapateiro disse em um tom doce de voz: “Estou muito feliz que tudo isso tenha acontecido. É delicioso vivenciar toda essa demonstração de amizade, em manifestação tão nobre de amor. Contudo, eu não tomarei nenhuma atitude de confronto contra o rapaz. Seguirei firme no meu trabalho, com o propósito de continuar a oferecer um produto diferenciado pelo meu dom e a minha arte.”

Um dos amigos lembrou-se das difamações. Sustentou que não poderiam restar impunes. Havia inegáveis danos morais e materiais a serem ressarcidos por via judicial. Outro alegou que um jovem egoísta e mimado não podia seguir impune, espalhando o mal por onde passasse. Teve um amigo que levantou a tese de que a mentira que não é contestada vira verdade. Argumentou que a honra de Loureiro estava em jogo. Por fim, decretaram que era preciso reagir.

Loureiro repousou a caneca de café sobre o balcão de madeira e explicou com serenidade: “Sem dúvida que é preciso reagir todas as vezes em somos atacados; quando se lançam sobre nós as sombras alheias. No entanto, a maneira como será a minha reação faz toda a diferença; define quem eu sou, as forças que me acompanham e traça a minha rota no Caminho. Posso combater as sombras alheias usando as minhas próprias sombras. Então, a escuridão se avoluma, levando muito sofrimento para todos os envolvidos. No entanto, sempre tenho a opção de oferecer a outra face. A face que o agressor não conhece ou ainda não entendeu como se usa. A face da luz. Somente assim não me permito aprisionar pela escuridão e transmuto, em definitivo, o mal”.

Eu reconheci o valor do discurso, mas queria saber como seria na prática. O artesão arqueou os lábios em leve sorriso, como se já esperasse por aquela pergunta e foi pedagógico: “Quietude, silêncio, alegria e trabalho.” Pegou a caneca para mais um gole de café e prosseguiu: “Quietude não significa inércia. Pelo contrário, é um poderoso movimento de expansão, só que interno; necessário para que eu encontre as forças e as soluções que preciso neste momento. O silêncio não apenas complementa a quietude, é a resposta além das palavras. É a convicção daquele que se move pela verdade e traz em si a força da luz. Isto também é conhecido como fé. A alegria, por sua vez, é necessária como expressão pela oportunidade da lição que se apresenta, é a lucidez de perceber o lado bom contido em todas as coisas. Por fim, o trabalho como oportunidade de caminhar e oferecer ao mundo o que temos de melhor.”

Como se a vida tivesse o cuidado de nos testar, irrompe na oficina, naquele instante, uma senhorinha, conhecida de muito anos do sapateiro e dos seus amigos. Comentou que estava muito preocupada com as notícias que circulavam na cidade sobre o artesão. Disse ter certeza de que não passavam de boatos, porém, sem desperdiçar a contradição, indagou se, por acaso, tinham qualquer fundo de verdade. Todos os olhos se voltaram para Loureiro. Sem qualquer traço de que aquela situação tivesse força para abalar a sua paz, ele respondeu, com profunda paciência, se utilizando outra pergunta: “A senhora conhece alguém que tenha sofrido alguma lesão por usar os sapatos que faço?” A senhorinha balançou a cabeça em negativa, mas teimou em lembrar-se das notícias desabonadoras. Loureiro fez um gesto com mão, como quem diz que nada podia fazer quanto a isso. Ela insistiu para que o sapateiro procurasse as pessoas para dar a sua versão dos fatos. O artesão foi sucinto na argumentação: “Confecciono sapatos nesta cidade há quase meio século. Penso que eles falam por mim.” Para encerrar, disse: “Não tenho nem devo ter qualquer poder sobre o que pensam ou falam as pessoas. Cada um é responsável por si. A mim, cabe apenas me vigiar.”

Um pouco sem jeito, talvez por não encontrar o que veio procurar, a senhorinha disse algumas palavras de apoio ao sapateiro, girou nos calcanhares e se foi. Depois de um breve momento de silêncio, um dos amigos quis saber se Loureiro seguiria com a sua rotina normalmente. O sapateiro explicou: “Em parte. Penso que nada acontece por acaso. Embora esteja satisfeito com os sapatos que faço, os contratempos servem para não nos permitir estagnar. Sempre podemos melhorar. A melhor resposta aos nossos antagonistas é a nossa própria evolução. De um jeito ou outro, as pessoas que se opõe a nós acabam se tornando, embora às avessas, importantes aliados para o nosso indispensável aprimoramento. Agradeço a cada um deles por me tornar uma pessoa melhor.”

O clima de tensão e sombras tinha arrefecido bastante. Começamos a conversar sobre como Loureiro poderia aperfeiçoar ainda mais os sapatos que fazia. Alguém lembrou que tinha ouvido falar sobre um novo solado que trazia uma espuma embutida no couro. Loureiro concordou em testá-lo. Falei que ele deveria também testar o couro vegetal, não apenas pela onda vegana que encantava o planeta, mas pela excelente qualidade com que era produzido. O sapateiro ficou bastante animado com essa possibilidade. Conversamos por mais algum tempo, ajudando ao nosso amigo a traçar novas estratégias de ataque. Agora com as ferramentas luz e não mais com os instrumentos das sombras. Até que a fome falou mais alto e lembramos que não tínhamos almoçado. Os amigos foram para as suas casas. Todos partiram com agradável sensação de leveza, na plena certeza de que, qualquer que fosse o desfecho, a batalha acabara de ser vencida.

Comentei sobre isso com Loureiro quando sentamos em um restaurante para almoçar. O bom sapateiro explicou: “A mansidão é uma virtude com um poder incomensurável, no entanto, ainda pouco conhecida. Nos enganamos por acreditar que a violência, em qualquer uma das suas manifestações possíveis, explicitas ou implícitas, físicas ou morais, através de uma ou de algumas das várias sombras existentes, são mecanismos eficientes de luta. Isto acontece porque não prestamos atenção na força serena de Jesus, no poder suave de Buda. É a não-cooperação de Mahatma Gandhi com a escuridão, é o sonho de que falava Luther King para vencer sem negociar com as trevas. Era o que cantava John Lennon em suas músicas. Todos eles se fizeram vitoriosos pela força da mansidão.”

Confessei que, ao contrário do que muitos imaginam, é preciso coragem para ser manso. Como nos mostra a História, a mansidão está destinada aos fortes. Contudo, não é fácil lembrar isso quando somos atacados ou acuados pela maldade. Loureiro balançou a cabeça em concordância e disse: “É justamente nos momentos mais difíceis da batalha que os melhores guerreiros se revelam. Estes não cedem às sombras, se mantêm firmes e inabaláveis nos fundamentos da luz”.

Piscou um olho como quem conta um segredo e concluiu: “Bem-aventurados os mansos; eles herdarão a terra.”

Yoskhaz


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