Uma carta e o Natal
Este será o primeiro Natal que enfrentaremos, pródigos e
lúcidos.
Até o ano passado conseguimos manter o mistério —e eu amava o brilho
de teus olhos quando, manhã ainda, vinhas cambaleando de sono em busca da
árvore que durante a noite brotara embrulhos e coisas. Havia um rito complicado
e que começava na véspera, quando eu te mostrava a estrela onde Papai Noel
viria, com seu trenó e suas renas, abarrotado de brinquedos e presentes.
Tu ias dormir e eu velava para que dormisses bem e
profundamente. Tua irmã, embora menor, creio que ela me embromava: na
realidade, ela já devia pressentir que Papai Noel era um mito que nós fazíamos
força para manter em nós mesmos. Ela não fazia força para isso, e desde que a
árvore amanhecesse florida de pacotes e coisas, tudo dava na mesma. Contigo era
diferente. Tu realmente acreditavas em mim e em Papai Noel.
Na escola te corromperam. Disseram que Papai Noel era eu —e
eu nem posso repelir a infâmia e o falso testemunho. De qualquer forma, pediste
um acordeão e uma caneta— e fomos juntos, de mãos dadas, escolher o acordeão.
O acordeão veio logo, e hoje, quando o encontrar na árvore,
já vai saber o preço, o prazo de garantia, o fabricante. Não será o mágico
brinquedo de outros Natais.
Quanto à caneta, também a compramos juntos. Escolheste a cor
e o modelo, e abasteceste de tinta, para "já estar pronta" no dia de
Natal. Sim, a caneta estava pronta. Arrumamos juntos os presentes em volta da
árvore. Foste dormir, eu quedei sozinho e desesperado.
E apanhei a caneta. Escrevi isto. Não sei, ainda, se
deixarei esta carta junto com os demais brinquedos. Porque nisso tudo o mais
roubado fui eu. Meu Natal acabou e é triste a gente não poder mais dar água a
um velhinho cansado das chaminés e tetos do mundo.
Folha de São Paulo (RJ), 31/12/2017
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Carlos Heitor Cony - Quinto ocupante da Cadeira nº 3 da ABL,
eleito em 23 de março de 2000, na sucessão de Herberto Sales e recebido em 31
de maio de 2000 pelo acadêmico Arnaldo Niskier. Faleceu dia 05 de janeiro de
2018.
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