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quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

UM GRANDE IMPASSE - Sherney Pereira

Um grande Impasse

          Caminhava livre pelas ruas do arraial, uma vaca muito bonita, que atendia pelo nome de “Beleléu”.

            Era um animal arisco, de propriedade de Manoel Ramos, e andava pregando susto, dando carreira em quem encontrasse pela frente. Todos temiam aquela “fera”. As crianças saíam às ruas sob as recomendações dos pais: “Tenham cuidado com  Beleléu!” O povo vivia revoltado com aquela situação. Um dia, encetaram um movimento, que visava pedir a prisão da vaca.

            Homens, mulheres e criança, reuniram-se na casa de Manoel Ramos e fizeram ver a ele o quanto era prejudicial a permanência de “Beleléu” vagando solta no arraial. Haveria de se dar um jeito no problema, o que não podia continuar era aquele clima de pavor que se instalara ali, simplesmente por causa de uma vaca. Sentindo-se pressionado, Manoel Ramos caçou a cabeça e diante do povo fez o seguinte juramento:

           - Calma, minha gente! Eu exijo apenas que vocês me deem um tempo, para que eu providencie um lugar onde prender minha vaquinha. Dentro de vinte e quatro horas, todos estarão livres da Beleléu. Eu prometo.

            Agora, sozinho, Manoel Ramos se pôs a matutar, procurando uma solução. A quem recorrer? Eis que de repente, lembrou-se do seu compadre Valmir Félix, um dos filhos de Manoel Félix Cardoso, somente ele poderia solucionar o problema, aceitando “Beleléu” na sua propriedade. Tudo foi feito conforme Manoel  pensou. Foi ter com o compadre que o autorizou  colocar a vaca junto ao seu gado. Tudo voltou ao normal, o povo passou a ter tranquilidade, Manoel Ramos também se viu livre da pressão popular e,  melhor para Beleléu, que agora tinha outras condições de vida, na pastagem verdejante de Valmir Félix.

            Naquela ocasião, eu e meu irmão Alfredo, que morreria afogado aos vinte anos de idade, no Rio Cachoeira, estudávamos na Escola Aloísio de Carvalho, em terras de Manoel Félix  Cardoso.

            Um dia, eu tive que ir sozinho à escola, porque o meu irmão estava doente. O dia amanhecera muito lindo, e o sol matinal rutilava pelas castanheiras. Peguei os livros e segui rumo à escola, temendo tão somente o encontro com Beleléu: eram exatamente sete horas da manhã, e ao abrir a cancela que dava acesso à fazenda, logo vi que eu seria o primeiro aluno a chegar, mas pude ver, também, que o meu caminho estava obstruído pelo gado que se concentrava no meio da estrada.

            Um pouco mais distante estava a vaca de Manoel Ramos, vigilante, pois havia dado cria a um lindo bezerro. E agora, o que fazer? Retornar para casa, ou aguardar que o gado se dispersasse? Eu teria que encontrar uma solução, pois passar por ali era impossível, seria realmente uma grande aventura.

            Estava eu absorto nos meus pensamentos quando, de súbito,  surgiu de dentro do mata uma figura esquálida, portando um estilingue, pendurado no pescoço, e uma capanga do lado. Era meu compadre Valdir – compadre de fogueira  -, pelo qual, ainda hoje, tenho profunda  admiração. Ele se aproximou de mim e, ao perceber a minha preocupação, foi logo indagando:

            - O que é que há, compadre; algum problema? Compadre, já faz quase meia hora que estou aqui, esperando que o gado saia da estrada para que eu possa passar. E o pior de tudo, é que o diabo da Beleléu está parida, e deve estar virado no demônio!

            - “Mas que bobagem, meu compadre! -  disse-me ele – já viu homem ter medo de vaca? Venha comigo...” Com uma pedra na mão, ele seguiu na frente, e eu o acompanhava um tanto desconfiado, morrendo de medo,  tinha certeza da grande carreira que íamos levar. Ao aproximar-nos, o gado levantou-se e “Beleléu”, que já estava de prontidão, ergueu o rabo, baixou a cabeça,  e investiu com fúria demoníaca, querendo acabar com a gente. Eu, que me mantinha à distância, saí em desabalada carreira e, em poucos segundos, pude alcançar a cerca, preferindo trepar na cancela para maior segurança. Quando corri,  ouvi um estalo seco, e fiquei mais apavorado, ao imaginar que “Beleléu” tivesse quebrando os ossos do meu compadre. Enganei-me, porque foi tudo  ao contrário: Valdir havia arremessado uma pedra certeira,  e tal foi o ímpeto com que o fizera,  que a vaca não conseguira o seu intento, pois ficara com a perna balançando no ar.

            Ainda trêmulo, desci da cancela e fui procurar os livros que haviam caído durante a carreira. Enquanto os procurava, ouvia as lamentações do “super-homem”. Olhei nos seus olhos, vi que as lágrimas escorriam pela face pálida do magricela, enquanto fazia um apelo patético:

            - “Pelo amor de Deus, meu compadre! Ninguém pode saber do acontecido. Se os meus pais souberem  de uma desgraça dessas, eles me matam”.

            Prometi não revelar  nada para ninguém, pois, apesar de ter repudiado o comportamento perverso do meu compadre, também fui capaz de reconhecer que ele agira daquela maneira na tentativa de proteger-me.

            No dia seguinte, a confusão estava generalizada. Manoel Ramos, ao tomar conhecimento do incidente, ficou indignado, e logo atribuiu a culpa  a Valmir Félix; foi à sua casa e deu-lhe uma xingadela, exigindo indenização, sob a alegação de que ele quebrara a perna da sua vaca, ao tentar ordenhá-la.

            Originou-se uma grande confusão. Manoel Ramos e Valmir Félix ficaram inimigos por muitos anos. Com a perna quebrada e ainda amamentando, Beleléu foi aos poucos perdendo a beleza de vaca saudável que era, e Manoel Ramos, desgostoso,  resolveu vendê-la  a Zé Barcaceiro que ainda a aproveitou para o abate.

            Assim, desaparecia para sempre a vaca mais famosa que já “pintou” na história do Salobrinho. Houve quem gostasse do
seu desaparecimento, pois com a sua morte, acabaria de uma vez por todas o  pavor daquela gente, que muitas vezes ficara impossibilitada  de andar nas ruas.

            Manoel Ramos, depois deste episódio, ainda viveu muitos anos no Salobrinho. Fez as pazes com Valmir Félix, nunca mais teve dúvidas quanto à culpa do compadre no caso “Beleléu”, e morreu tendo a certeza de que foi ele o responsável  direto por tão grande prejuízo.../

 (Salobrinho - ENCANTOS E DESENCANTOS DE UM POVOADO)
Sherney Pereira

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