Um grande Impasse
Caminhava
livre pelas ruas do arraial, uma vaca muito bonita, que atendia pelo nome de
“Beleléu”.
Era um
animal arisco, de propriedade de Manoel Ramos, e andava pregando susto, dando
carreira em quem encontrasse pela frente. Todos temiam aquela “fera”. As
crianças saíam às ruas sob as recomendações dos pais: “Tenham cuidado com Beleléu!” O povo vivia revoltado com aquela
situação. Um dia, encetaram um movimento, que visava pedir a prisão da vaca.
Homens,
mulheres e criança, reuniram-se na casa de Manoel Ramos e fizeram ver a ele o
quanto era prejudicial a permanência de “Beleléu” vagando solta no arraial.
Haveria de se dar um jeito no problema, o que não podia continuar era aquele
clima de pavor que se instalara ali, simplesmente por causa de uma vaca.
Sentindo-se pressionado, Manoel Ramos caçou a cabeça e diante do povo fez o seguinte
juramento:
- Calma,
minha gente! Eu exijo apenas que vocês me deem um tempo, para que eu
providencie um lugar onde prender minha vaquinha. Dentro de vinte e quatro
horas, todos estarão livres da Beleléu. Eu prometo.
Agora, sozinho,
Manoel Ramos se pôs a matutar, procurando uma solução. A quem recorrer? Eis que
de repente, lembrou-se do seu compadre Valmir Félix, um dos filhos de Manoel
Félix Cardoso, somente ele poderia solucionar o problema, aceitando “Beleléu”
na sua propriedade. Tudo foi feito conforme Manoel pensou. Foi ter com o compadre que o
autorizou colocar a vaca junto ao seu
gado. Tudo voltou ao normal, o povo passou a ter tranquilidade, Manoel Ramos
também se viu livre da pressão popular e,
melhor para Beleléu, que agora tinha outras condições de vida, na
pastagem verdejante de Valmir Félix.
Naquela
ocasião, eu e meu irmão Alfredo, que morreria afogado aos vinte anos de idade,
no Rio Cachoeira, estudávamos na Escola Aloísio de Carvalho, em terras de
Manoel Félix Cardoso.
Um dia, eu
tive que ir sozinho à escola, porque o meu irmão estava doente. O dia
amanhecera muito lindo, e o sol matinal rutilava pelas castanheiras. Peguei os
livros e segui rumo à escola, temendo tão somente o encontro com Beleléu: eram
exatamente sete horas da manhã, e ao abrir a cancela que dava acesso à fazenda,
logo vi que eu seria o primeiro aluno a chegar, mas pude ver, também, que o meu
caminho estava obstruído pelo gado que se concentrava no meio da estrada.
Um pouco mais distante estava a vaca
de Manoel Ramos, vigilante, pois havia dado cria a um lindo bezerro. E agora, o
que fazer? Retornar para casa, ou aguardar que o gado se dispersasse? Eu teria
que encontrar uma solução, pois passar por ali era impossível, seria realmente
uma grande aventura.
Estava eu
absorto nos meus pensamentos quando, de súbito,
surgiu de dentro do mata uma figura esquálida, portando um estilingue,
pendurado no pescoço, e uma capanga do lado. Era meu compadre Valdir – compadre
de fogueira -, pelo qual, ainda hoje,
tenho profunda admiração. Ele se
aproximou de mim e, ao perceber a minha preocupação, foi logo indagando:
- O que é
que há, compadre; algum problema? Compadre, já faz quase meia hora que estou
aqui, esperando que o gado saia da estrada para que eu possa passar. E o pior
de tudo, é que o diabo da Beleléu está parida, e deve estar virado no demônio!
- “Mas que
bobagem, meu compadre! - disse-me ele –
já viu homem ter medo de vaca? Venha comigo...” Com uma pedra na mão, ele
seguiu na frente, e eu o acompanhava um tanto desconfiado, morrendo de
medo, tinha certeza da grande carreira
que íamos levar. Ao aproximar-nos, o gado levantou-se e “Beleléu”, que já
estava de prontidão, ergueu o rabo, baixou a cabeça, e investiu com fúria demoníaca, querendo
acabar com a gente. Eu, que me mantinha à distância, saí em desabalada carreira
e, em poucos segundos, pude alcançar a cerca, preferindo trepar na cancela para
maior segurança. Quando corri, ouvi um
estalo seco, e fiquei mais apavorado, ao imaginar que “Beleléu” tivesse
quebrando os ossos do meu compadre. Enganei-me, porque foi tudo ao contrário: Valdir havia arremessado uma
pedra certeira, e tal foi o ímpeto com
que o fizera, que a vaca não conseguira
o seu intento, pois ficara com a perna balançando no ar.
Ainda
trêmulo, desci da cancela e fui procurar os livros que haviam caído durante a
carreira. Enquanto os procurava, ouvia as lamentações do “super-homem”. Olhei
nos seus olhos, vi que as lágrimas escorriam pela face pálida do magricela,
enquanto fazia um apelo patético:
- “Pelo
amor de Deus, meu compadre! Ninguém pode saber do acontecido. Se os meus pais
souberem de uma desgraça dessas, eles me
matam”.
Prometi
não revelar nada para ninguém, pois,
apesar de ter repudiado o comportamento perverso do meu compadre, também fui
capaz de reconhecer que ele agira daquela maneira na tentativa de proteger-me.
No dia
seguinte, a confusão estava generalizada. Manoel Ramos, ao tomar conhecimento
do incidente, ficou indignado, e logo atribuiu a culpa a Valmir Félix; foi à sua casa e deu-lhe uma
xingadela, exigindo indenização, sob a alegação de que ele quebrara a perna da
sua vaca, ao tentar ordenhá-la.
Originou-se
uma grande confusão. Manoel Ramos e Valmir Félix ficaram inimigos por muitos
anos. Com a perna quebrada e ainda amamentando, Beleléu foi aos poucos perdendo
a beleza de vaca saudável que era, e Manoel Ramos, desgostoso, resolveu vendê-la a Zé Barcaceiro que ainda a aproveitou para o
abate.
Assim,
desaparecia para sempre a vaca mais famosa que já “pintou” na história do
Salobrinho. Houve quem gostasse do
Manoel Ramos,
depois deste episódio, ainda viveu muitos anos no Salobrinho. Fez as pazes com
Valmir Félix, nunca mais teve dúvidas quanto à culpa do compadre no caso “Beleléu”,
e morreu tendo a certeza de que foi ele o responsável direto por tão grande prejuízo.../
Sherney Pereira
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