O
carregador Prego
Eu vislumbrava
a sua figura meio apagada pela distância no tempo. Era muito pequena quando via
aquele negrão alto, escuro como uma estátua hercúlea de ébano, sorridente,
serviçal, fazendo carrego na estação da estrada de ferro. Daquele passado
vinha a lembrança das vezes que ia embarcar ou receber meu pai na estação
ferroviária nas suas viagens para Ilhéus ou Salvador.
No passeio
da estação, um pequeno grupo de carregadores estava sempre a postos esperando
trabalho, e aquele negrão alto, de modo educado, era sempre requisitado por meu
pai. Prego era o seu nome. Não sei o porquê do apelido, como nunca soube o seu
nome de batismo. Prego agarrava malas e embrulhos numa disposição de atleta sem
nunca perder a gentileza que lhe era inata.
Os anos
passaram para mim e para aquele carregador. Eu, de criança ficando adulta, e
Prego, de adulto que era, envelhecendo. A estrada de ferro acabou, os
carregadores foram desaparecendo pelo serviço que foi minguando e assim, com o
passar dos anos, a vida foi distanciando pessoas, apagando lembranças,
modificando estilos de vida. Prego desapareceu de minha visão e foi esquecido.
Desaparecido
o trem de ferro, outro meio de transporte surgiu: o táxi. Desembarcado o
passageiro, malas e volumes são rapidamente engolidos pela boca escancarada do
carro, que rapidamente os conduz ao destino. Assim, aos poucos, aqueles homens
e trabalhadores da estação foram ficando sem o seu ganha-pão. Mais tarde,
perdendo o vigor de seus braços e sem ampara de leis justas, foram eles, pouco a pouco sumindo na voracidade do
quotidiano, sem proteção. E assim, sumiu do meu raio de visão a figura do negro
Prego.
Muitos anos
mais tarde o encontro no nosso cenário, casualmente, trazido pelo braço amigo
de meu irmão. Este era ainda criança, quando Prego, já homem feito, trabalhava
na estação do trem. Foi encontrado abandonado, faminto, velho e doente, sentado
num banco da Praça Santo Antônio. Olhava a rua com o olhar apagado pela névoa
dos anos e da catarata. Não pedia esmola. A sua dignidade de homem trabalhador
nunca descera a tanto, mesmo naquelas circunstâncias. Faminto, simplesmente
olhava triste, os que passavam pelas
ruas de Itabuna, a cidade que ele ajudara com a força de seus músculos e que
não conhecia mais. Triste, simplesmente olhava. Não sei como meu irmão, que não
o conhecera antes, pois era muito pequeno, mas sabia do seu passado de
carregador bom e prestativo, o encontrou. Trouxe-o para casa, onde Prego passou
a ter almoço e jantar garantidos, e o presente de um cobertor de lã. Infelizmente
a ajuda durou pouco. Quando se pensava em dar-lhe melhor garantia e amparo, o
seu protetor teve de fazer uma viagem urgente, da qual não voltaria mais.
Atordoada pelo
acontecido, não soube o que foi feito de Prego. Afastada alguns dias de casa,
quando me lembrei dele não o encontrei mais. Talvez naquele espaço de tempo
tenha feito a mesma viagem do meu irmão, encontrando-se os dois lá em cima, na
casa do mesmo Pai. Lá do alto, quem sabe Prego ainda olhe com o seu ar
sorridente e humilde, porém feliz, as agruras, as misérias e indiferença que
largou aqui na terra.
Gostaria de
ter tido o tempo de lhe externar um pouco do calor humano que você, Prego,
merecia dos filhos de Itabuna que o conheceram, mas o destino mais uma vez
negou-lhe essa dádiva, a gratidão daqueles a quem tão bondosamente você serviu
na sua humildade.
Você,
Prego, negro velho e bondoso, de alma simples de criança, que refletia no olhar
manso, a beleza do seu espírito, é pena
que o nosso encontro tenha sido tão rápido e tardio. Mas aqui vai, para você, a
minha homenagem.
(RETALHOS)
Helena Borborema
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HELENA BORBOREMA - Nasceu em Itabuna. Professora
de Geografia lecionou muitos anos no Colégio Divina Providência, na Ação
Fraternal e no Colégio Estadual de Itabuna. Formada em Pedagogia pela Faculdade
de Filosofia de Itabuna. Exerceu o cargo de Secretária de Educação e Cultura do
Município. (A autora)
Conhecida professora itabunense, filha do Dr. Lafayette Borborema, o primeiro advogado de Itabuna. É autora de ‘Terras do Sul’,
livro em que documento, memória e imaginação se unem num discurso
despretensioso para testemunhar o quadro social e humano daqueles idos de
Tabocas. Para a professora universitária Margarida Fahel, ‘Terras do Sul’ são
estórias simples, plenas de ‘emoção e humanidade, querendo inscrever no tempo a
história de uma gente, o caminho de um rio, a esperança de uma professora que
crê no homem e na terra’. (Cyro de Mattos)
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