O baiano Ângelo Roberto, ilustrador de vários livros
de nossa autoria, faleceu hoje pela manhã em Salvador. É triste, muito
triste a notícia, está doendo muito. Em 1999, no meu livro "O Mar na
Rua Chile", dedico uma crônica a esse amigo de geração e parceiro na
arte. Reproduzo abaixo a crônica referida, maneira de homenagear um pouco
o valor desse genial poeta do traço.
Admirável Ângelo Roberto
Cyro
de Mattos
Diante dos desenhos de Ângelo Roberto, baiano de Ibicaraí,
radicado em Salvador desde 1948, a primeira impressão que se tem é
de que a vida é ato de amor. Figuradas no real, criaturas simples sugerem o
visual cativante através de uma poetização imaginativa. Mãos e pés
enormes não representam detalhes encaixados de maneira inteligente no humano
que se pretende figurar. É mesmo o jeito próprio de imaginar o humano em seu
excesso de pobreza, a nos atingir com amor em sua simplicidade. Podemos perceber isso na
imagem do menino, abraçando o cavalo amigo com todo o calor do coração. Em são
Francisco de Assis e seus pássaros que acendem o dia, levando fraternidade
pelos quatro cantos cardeais. Ainda na lágrima da
criança triste, riscada no instante do trauma causado pelo
passarinho morto na gaiola.
Ângelo Roberto, como se vê, é um poeta do traço expressivo.
A imaginação rica que possui lateja no drama como um
feixe de nervos numa só ritmação. Sensorial, intensa, sutil nos pontos que o
artista sabe imprimir com mestria nas linhas. Nos poros abertos de sua verdade
sentida pela vida. Linha, ponto e movimento pulsam com amor ao mesmo tempo,
numa só projeção do drama. Flagrado no episódio tendo às vezes a configuração
no mais exterior uma significação interna, de dor e cisão súbita feita na
existência rústica. Acontece assim a concentração de forças que vibram na
expressão oculta do vaqueiro baleado.
Já se disse que poesia é concentração, iluminação do ser e
verdade no seio da linguagem plasmada. Então percebemos assim que Ângelo
Roberto oferece com freqüência ao desenho momentos de poesia significativa. O
gesto simples do artesão por suas criaturas, fraterno e doce tantas vezes nas
emoções captadas configura na superfície branca o espírito pontilhado e delineado
com o traço leve quando corporifica a matéria. Diríamos que a vida nesse
instante flutua ou se flagra naquela zona suspensa do azul, que há muito tempo
coabita dentro de nós, naquela aderência mansa de certo clima poético em nossa
paisagem íntima.
Vagares de ternura, revelação solidária da tristeza,
instante cálido da mulher com flor no seio. Tudo idealizado por meio
de pontos e linhas que determinam um ritmo suave. Configuram na
expressão segura o tema real do imaginário com objetivo de transmitir valores
emotivos. Representam com habilidade a arte de riscar uma geometria que se
projeta no tempo do viver, do sentir e do amar, para ocupar determinado estado
onírico.
Posso dizer que os trabalhos desse artista humaníssimo que é
Ângelo Roberto, de rica vocação para o traço poético, mostram outra vez que a
Arte é necessidade fundamental da vida como forma de conhecê-la. Concordância
de verdade e beleza, vínculo de gravidade e jogo, pode até não ser substitutivo
da vida, não tendo mais importância do que comumente lhe é dada. Porém, útil
compartilha a solidão, cativante aproxima as criaturas, dá prazer e faz meditar
dentro daquele entendimento tácito, que a vida no ritmo feroz de
conflitos e abismos das civilizações atuais é destituída de sentido efetivamente.
Feita com amor e talento, de maneira humaníssima, reveladora
do ser na existência, pode não salvar o indivíduo no conturbado lado de animal
social, mas é ato que torna a vida suportável, sensível e essencial.
E viver sem ela seria mesmo impossível.
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Desenho da coleção “Cavalos & Sol” de Ângelo Roberto
O "movimento
elegante, as linhas belíssimas" do cavalo traçados por Ângelo Roberto
Fonte: Terra
Cyro de Mattos - é baiano de Itabuna. Escritor e poeta,
Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Sul da Bahia).
Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil, Academia de
Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna.
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