Por Davi Nunes
A transposição do sentimento africano para o Brasil ocorreu
muito através das línguas que eles trouxeram para cá. A língua como
revestimento sensível da nossa humanidade, transposição dos laços profundos do
coração, da ancestralidade afetuosa que resistiu às atrocidades transatlânticas
– absurdas ações que duraram séculos. Dois continentes e um mar tingido de
sangue, não foram suficientes para destruir a beleza dos sentimentos
originários dos diversos povos africanos que chegaram por essas terras.
Os povos bantos, assim, foram os primeiros a chegarem nesse
país. De maneira que as línguas da raiz banto: Quimbundo, Quicongo, Umbundo,
entre outras influíram de forma substancial na formação do português
brasileiro, conseguiram influenciar nas diversas estruturas do idioma e
colocaram na vitrine da fala e escrita signos que nos religam a uma maneira de
sentir e pensar africano, que permaneceu e permanece na nossa forma de
demonstrar afeto e saber.
Assim, uma das palavras que está dentro dessa raiz
estruturante na constituição do português, ou “pretoguês” brasileiro (a qual me
atenho aqui) é a palavra “chamego”, ou mais africanamente escrita “xamego”.
O chamego é um sentimento de atração – repuxo civilizatório
ancestral íntimo – de negrxs que veio com os povos bantos da África e ganhou
campo fértil no Brasil. É lastro de afeto que compõe o ser, é o galanteio e o
bem-querer que se bem feito se chega ao xodó para daí se construir o dengo.
Talvez pode se equiparar com a paixão, mas a paixão na
cultura ocidental funciona mais como um desalinho dos sentidos, que pode pender
para algo bom ou ruim. Entre a tragédia e a benevolência a linha é tênue.
Diferente do chamego que é alinho manhoso dos sentidos. É sublimação positiva
dos sentimentos. É alinhamento ancestral.
Estar de chamego com alguém é estar preocupado em encantar a
pessoa do nosso desejo, há poesia e flerte libidinoso nisso, não é sentimento
murcho, preenche a existência. O chamego é força propulsora de beleza, é o
religamento dos continentes afastados, que se manifesta no frio que esquenta o
espírito a eriçar os pelos.
Além disso, pensando de maneira mais macro, o chamego nas
relações familiares e quilombolas é uma prática social de restabelecimento do
ser. Se a escravidão e o racismo trouxeram e trazem o banzo – dor e resistência
– o chamego cura, reestabelece, dar sentido onde tem desespero. Faz com que se
vislumbre o dengo e resista às intempéries estruturais que nos assola no mundo.
Por isso, antes do dengo tem o chamego. Tem que saber
“chamegar” para arar o terreno da afetividade na manha, assentar o xodó, fluir
de peles, prazeres e fertilidades, entrelaçar corações para erguer de forma
suprema o dengo.
Davi Nunes é colaborador do portal SoteroPreta, mestrando no
Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem- PPGEL/UNEB, poeta, contista
e escritor de livro Infantil.
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